sábado, 19 de agosto de 2017

9. A Menina e o Relógio Carrilhão

- Como é passar a vida contando o tempo? – perguntou a Menina ao Relógio Carrilhão.
- Essa pergunta é equivocada, Menina. Nós, relógios, não contamos o tempo. Nós o fabricamos. É com o árduo esforço das nossas engrenagens precisas que o tempo corre, corretamente fabricado.
- Como é possível fabricar o tempo?
- E você acha que a coisa acontece como? O tempo, Menina, é mais um dos inventos da humanidade, engenhosa em capturar todas as coisas. O tempo é uma coisa fabricada, por mais que isso te espante. É um esforço coordenado por toda gente todo dia.
- Mas o tempo passa para todas as coisas, e não só para a humanidade! – retrucou a Menina, perspicaz.
- Mas nem todas as coisas nomeiam e catalogam o tempo como faz a humanidade, Menina. Ou você acha que uma montanha conta o tempo em horas, minutos e segundos? O tempo como conhecemos é uma invenção, uma excelente invenção, aliás.
- Isso é assombroso... – respondeu a Menina, pensativa. – Toda nossa vida é organizada pelas horas, minutos e segundos.
- Para você ver o poder de uma invenção desse tipo. E o tamanho da importância do nosso trabalho de relógios.
- É mesmo um trabalho de muita responsabilidade. – falou a Menina, com admiração. – Que horas são?
O Relógio Carrilhão respondeu com precisão para a Menina, que agradeceu e se despediu, deixando-o com seu importante trabalho.
Naquela manhã, a Menina passou o intervalo inteiro inventando mundos imaginários. Criava, na sua imaginação, um lugar onde a humanidade não tivesse fabricado o tempo. Um mundo em que a passagem das coisas era nomeada de outra forma, percebida de outro jeito.
Até que o sinal tocou. Era o tempo: ele havia acabado.

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segunda-feira, 14 de agosto de 2017

8. A Menina e a Rosa Vermelha

- Você não se cansa de parecer tão frágil? – perguntou a Menina, delicadamente.
- E isso é um problema? – retrucou a Rosa Vermelha, gentilmente.
- Não sei dizer ao certo... Mas me parece perigoso ser tão frágil.
- Isso porque vivemos em um tempo de brutalidades, Menina. Por isso a delicadeza parece um defeito. Mas é justamente o contrário: a fragilidade é fruto de muito trabalho.
- Mas qualquer pessoa pode desmanchar suas pétalas com o menor descuido...
- É verdade. Contra violência não há diálogo possível, senão a violência. Por isso nós, rosas vermelhas, temos nossos espinhos.
- Para furar dedos violentos?
- Para nos proteger e garantir o espaço que precisamos para desenvolver nossa fragilidade. É com ela que nós, rosas vermelhas, acolhemos as pequenas coisas do mundo, suspiros, olhares, intenções, e por isso, podemos ser um símbolo-gesto do amor. É nossa fragilidade que nos permite perceber os outros seres delicados, as outras existências frágeis que fazem a vida, e por isso, podemos ser um símbolo-gesto de uma revolução.
- Tudo a partir da fragilidade?
- Tudo a partir da fragilidade. Quando alcançamos o máximo da nossa delicadeza é quando realizamos o máximo da nossa potência! Esse é o momento em que nós, rosas vermelhas, exalamos o máximo do nosso perfume.
- Você é mesmo muito linda! – respondeu a Menina, com admiração. – E infinitamente forte na sua fragilidade. Gratidão por isso.
E se despediram a Menina e a Rosa Vermelha.
Naquela noite, a Menina fez uma lista no seu caderno, com todas as suas fragilidades. Era uma lista grande. Depois, foi dormir. Morrendo de orgulho de si mesma e de todas as suas delicadezas.

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sexta-feira, 11 de agosto de 2017

7. A Menina e o Rato de Esgoto

- Mas você não tem muitas doenças? – perguntou a Menina, sem conseguir esconder seu receio.
- Sim, diversas. Só não sei o nome de todas. – respondeu o Rato de Esgoto, com naturalidade.
- Isso não é muito perigoso?!
- O suficiente, mas nada que fuja da normalidade de qualquer uma das criaturas que vivem nas profundezas da cidade. Minhas doenças são tão perigosas quanto as doenças de um cachorro sarnento, ou de uma pomba de praça. Somos iguais em doença.
- E em que vocês são diferentes? – disse a Menina, já com menos receio.
- No ódio. Somos diferentes porque recebemos mais ódio da humanidade do que qualquer outra das criaturas do submundo. Um cão sarnento vez ou outra ganha um afago, as pombas ganham migalhas de pão apesar da sua condição. Mas para nós, ratos de esgoto, só são oferecidos gestos de ódio.
- E por que isso acontece? – questionou a Menina, aflita.
- A humanidade não precisa de muitos motivos para cultivar o ódio. Ao contrário, precisa dele. O ódio é o motor de muitas das realizações da espécie humana.
- Que coisa terrível...
- Eu prefiro pensar que é uma condição. – respondeu o Rato de Esgoto. – Sabemos que em nós, criaturas do submundo, se deposita o ódio da humanidade que caminha tranquilamente na luz do dia. Por isso, sobrevivemos com cuidado dos restos que conseguimos fisgar. Mas lá embaixo, longe dos olhos dos homens e mulheres, temos nossa paz e nosso império. Lá, entre canos de esgoto e toda sorte de lixos e dejetos, fazemos nossa vida, com nossas festas, nossos ritos, nossos acasalamentos.
- O mundo dos ratos e ratas de esgoto...
- Nosso mundo, que persiste, a despeito da humanidade com seu ódio. Bem, Menina, preciso ir. Gratidão por sua humildade.
- Eu que fiz uma ideia errada de você. – disse a Menina, sem receio algum.
- Então não tem mais medo de mim?
- Não, nenhum.
- Pois deveria, Menina. – finalizou o Rato de Esgoto. – Deveria.

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segunda-feira, 7 de agosto de 2017

6. A Menina e a Velha Árvore

- Então você já viu passarem muitos anos? – perguntou a Menina, com admiração.
- Alguns... – respondeu a Velha Árvore, afetiva – Mas estou longe de ser a árvore mais velha desse parque. Não muito longe daqui, existe um jequitibá de mais de 300 anos.
- E como é viver tanto tempo?
- Não há nisso nada de muito especial. Já vivi muitos invernos e vi mudar o ecossistema diversas vezes. Em algumas noites, sonho com tempos antigos, quando as florestas ocupavam todas as partes e a espécie humana não tinha essa fome tão voraz de agora.
- Puxa... Que incrível!
- É como eu disse, não existe mérito algum em viver mais ou menos anos. Se puder aprender alguma coisa, foi isso: eu, que sou uma árvore, tenho o exato mesmo tempo que você, Menina, o tempo de uma vida.
Um silêncio antigo assoprou pelo parque. A Menina não disse palavra. A Velha Árvore continuou.
- Uma caverna leva 200 mil anos só para nascer. As estrelas vivem bilhões de anos, antes de engolirem a si próprias numa gigantesca explosão de fogo. Algumas borboletas vivem uma semana. E todos vivem o mesmo, Menina, o tempo de uma vida. Nem mais, nem menos.
A Menina continuou quieta. Escutava a vida que acontecia. E abraçou o troco da boa anciã, profundamente.
- Mas o que te entristece, Velha Árvore? – perguntou a Menina, quebrando o silêncio.
- Pensar nas vidas que são cortadas antes da hora, Menina. – respondeu, profundamente. – Pensar nas vidas que são cortadas antes da hora.

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quinta-feira, 3 de agosto de 2017

5. A Menina e o Leão do Circo

- Não te maltratam demais por aqui? – perguntou a Menina ao Leão do Circo, alarmada.
- Nada muito fora do comum. É verdade, às vezes o domador exagera, é um pouco deprimente passar a maior parte do tempo dentro de uma jaula, mas pelo menos tenho comida todos os dias, banho toda semana. Alguns trapezistas não chegam a tanto. Em um circo, Menina, todos cumprem com sua cota de maus tratos.
- Mas o trapezista é livre para ir, não vive em uma jaula.
- Livre para ir aonde, Menina? – perguntou o leão com ironia. – As criaturas do circo ao circo pertencem. Nós, leões do circo, temos a carne feita de lonas e trapézios, nossos rugidos são os olhos do público brilhando de espanto! Nós, como todos os seres deste lugar, somos comprometidos com o picadeiro.
- Então vocês estão presos ao circo?
- De certa forma... Mas me diga, Menina, qual ser que respira que não carrega suas prisões? Além disso, você esquece do mais importante: o espetáculo! É por ele que ficamos!
- Como assim?
- É difícil dizer... Na maior parte do tempo, viajamos de maneira precária, enfrentamos a fome e o frio. Os espetáculos tornam-se repetitivos, tediosos, com os mesmos estalos de chicote, as mesmas marcas de subir e descer da cadeira, o mesmo rugido de efeito... Mas às vezes... Às vezes, em algumas apresentações, alguma coisa se passa e as almas transbordam! Nesses momentos, fazemos no picadeiro um instante de vida!
- E é por esse instante que vocês do circo passam por tantas provações?
- É por esse instante que o circo permanece vivo. E é por ele que permanecemos no circo. O show tem que continuar!
- O show tem que continuar.
E se despediram a Menina e o Leão do Circo, que já começava a se preparar para o show daquela noite.
A Menina ficou para o espetáculo. E entre lágrimas e sorrisos se encantou com a contorcionista, vibrou com os trapezistas, temeu o leão com seu rugido de rei dos animais.
E foi embora, transbordada de vida.

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4. A Menina e a Formiga Operária

- Você nunca tem vontade de fazer outra coisa? – perguntou a Menina a Formiga Operária.
- Não, nunca. – respondeu sem parar seu árduo trabalho de carregar folhas gigantes até o formigueiro – Por quê? Eu deveria?
- Não sei... Suponho que sim. Eu tenho vontade de tantas coisas... – respondeu a Menina, francamente.
- Isso acontece porque você vê o mundo do seu ponto de vista, Menina. Os humanos são cheios de vontades contraditórias. Nós, formigas operárias, não temos dúvidas: cumprimos com nosso dever de formigas.
- Sem descanso?
- Sem descanso.
- Mas por que tanto trabalho?
- Você teria coragem de pisar em um formigueiro?
- Não... – respondeu a Menina, sem entender muito bem.
- Consegue imaginar uma praça ou um parque sem formigas?
- Não.
- Ficaria tranquila se soubesse que sua casa foi tomada por formigas?
- Não!
- Viu? Percebe a dimensão do nosso poder? Poder das formigas, nosso poder. Nós, que somos tão pequeninas.
- Então vocês trabalham para ter poder?
- Não, Menina, trabalhamos porque é com o trabalho que construímos nossa existência, é com trabalho que persistimos no tempo. Com nosso esforço e suor enfrentamos a vida, e vencemos.
- Sem nunca descansar?
- Sem nunca descansar.
- Entendo completamente. – finalizou a Menina, com seriedade. – Desculpe tomar o seu tempo. Você deve mesmo ter muito o que fazer.
A formiga operária sorriu e rapidamente entrou no formigueiro, sem se despedir, carregando sua folha gigante em seu interminável trabalho de formiga.
Depois daquela conversa, a Menina ficou inquieta. Andou de um lado para o outro a manhã inteirinha, com uma pergunta lhe martelando a cabeça, insistentemente:
“Quando dormem, com o que sonham as formigas?” 

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segunda-feira, 31 de julho de 2017

3. A Menina e o Gato de Rua

- Então você já viu morrerem muitos dos seus? – perguntou a Menina, assombrada.
- Inúmeros. – respondeu o Gato de Rua – Da ninhada que fiz parte, dos 6 gatos que naquele dia vieram ao mundo, sou o único que sobreviveu.
- Que horror! – disse a Menina com os olhos cheios de lágrimas.
- Por favor, guarde sua pena para você. Nós, gatos de rua, sabemos do perigo que caminha lado a lado com nossa existência. Ninguém quer a sua piedade por aqui.
- Mas você não se entristece?
- Naturalmente. Quando morre um dos nossos, nós cantamos nossa perda, celebramos nossa tristeza. Fazemos nossas serenatas como uma forma de luto. Mas nunca nos apiedamos.
- Mas tenho pena por você não ter uma casa, um dono...
- Fui pego da rua quando era filhote. Tive uma casa e um dono. Por mais que você não compreenda, Menina, muitos dos gatos escolhem a rua, assim como eu fiz.
- Mas não é uma vida de muito risco?
- Essa é uma pergunta tola, Menina. O risco é o motivo para nós, gatos, escolhermos a rua.
- Então vocês não temem a morte?
- Não, Menina: nós amamos a vida. Nos arriscamos tanto porque sabemos que as delícias de viver se escondem do lado de lá da segurança, nos quintais vigiados por cachorros, nas lixeiras depois dos arames, nos ninhos no topo das árvores. O risco, Menina, é o motor da vida.
- Você tem mesmo muita coragem... – respondeu a Menina com admiração e fez um último afago no Gato de Rua, antes de se despedir.
Depois daquela conversa, a Menina ficou inquieta. Pensava nos inúmeros aprendizados de segurança que recebera ao longo de sua educação. Pensava na vida que fugia enquanto ela, a Menina, seguia os protocolos de segurança do seu cotidiano. No dia seguinte, ao invés de apanhar o ônibus, sem contar para ninguém, a Menina voltou a pé da sua escola.
Apesar do risco.


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quinta-feira, 27 de julho de 2017

2. A Menina e o Cão de Guarda da Policia

- Você nunca se cansa? – perguntou a Menina ao Cão de Guarda da Policia.
- Eu não posso me cansar. – respondeu o policial canino – É quando nos cansamos que o inimigo vem.
- E quem são os inimigos?
- Essa pergunta não faz o menor sentido, Menina. Nós, cães da policia, não somos treinados para reconhecer o inimigo.
- Então vocês são treinados para o quê?
- Para reconhecer os aliados.
- E todo o resto é inimigo?
- Todo o resto é uma ameaça. Por isso, não podemos descansar.
- Mas não é uma vida de muito ódio? – perguntou a Menina, sinceramente preocupada.
- Também nisso somos treinados. – respondeu o cão de guarda. – Você, Menina, precisa compreender o ódio de outra forma. Para nós, policiais caninos, o ódio não é um sentimento, é uma ferramenta. Sem ela, não é possível realizar nosso trabalho.
- Então porque você não rosnou para mim?
- Porque mesmo o ódio tem suas exceções.
- Compreendo... – Respondeu pensativa. – Obrigada por isso.
E se despediu do Cão de Guarda da Policia, que vigiou atentamente os passos da Menina enquanto ela ia embora.
Naquela noite, a preocupação não deixou a Menina dormir. Pensava no futuro, em um tempo em que todos os afetos tenham virado ferramentas, em que as pessoas caminharão por aí, ocas, mecanicamente apressadas com suas caixas de utensílios sentimentais.
E cantou. Cantou sua música predileta.
E encheu seu quarto de afeto.

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quinta-feira, 20 de julho de 2017

1. A Menina e o Pássaro Engaiolado

- Mas não é terrível? – perguntou a Menina ao pássaro engaiolado.
- Para ser sincero, não. Eu até prefiro.
- Mas como pode alguém preferir ficar engaiolado a voar pelo céu?
- É que você vê o céu com muita poesia, Menina. Em primeiro lugar, voar cansa muito. Cansam-se as asas, o pulmão, os olhos. Só é possível voar com muito cansaço. Em segundo lugar, existem muitos perigos no céu. Gatos à espreita, carros assassinos, estilingues mortais. Voar é sempre um gesto de muito perigo.
- Então é por causa do cansaço e do medo que você não voa mais?
- Não, Menina, é por causa do cansaço e do medo que eu prefiro viver numa gaiola.
- Mas seus dias não são todos iguais?
- São igualmente seguros, mas coisas também acontecem na segurança. Vejo muitas coisas aqui da minha gaiola. Tenho o privilégio de observar o mundo e pensar e cantar sobre ele.
- Tudo de dentro da sua gaiola?
- Tudo de dentro da minha gaiola. Estou te dizendo, tem suas qualidades. De manhã todos nós, pássaros engaiolados da rua, cantamos juntos. Cantamos sobre as maravilhas de vivermos em gaiolas.
- Eu já ouvi. – respondeu a Menina tristemente – É mesmo muito bonito.
E se despediu do pássaro em sua gaiola, que cantou para se despedir enquanto a Menina ia embora. Naquele dia, a Menina teve medo do futuro. Temeu pelo tempo em que todos os pássaros desejarão de bom grado as gaiolas à possibilidade do voo.
E chorou.


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