segunda-feira, 26 de setembro de 2016

23. A Menina e o Espelho

- Você passa todo o tempo refletindo o mundo? – perguntou a Menina ao Espelho.
- Sim. Esta é nossa principal função de espelhos: refletir em imagem a superfície da existência. Cumprimos com dedicação nosso trabalho. Atualmente, somos bem populares.
- É verdade, os espelhos habitam quase todos os lugares.
- Temos diversas utilidades. No entanto, nesse tempo que estamos, o que mais fazemos, sem dúvida, é permitir que a espécie humana fique contemplando sua própria imagem, vaidosamente. Nesses dias que vivemos, Menina, as imagens passaram a ter muito valor. – respondeu o Espelho, filosófico.
- Mas quem é que não gosta, pelo menos um pouquinho, de se arrumar na frente do espelho? – retrucou a Menina, com sinceridade.
- Você tem razão. Temos consciência disso. Nós, espelhos, nos orgulhamos do nosso trabalho, do nosso esforço de refletir o mundo, de habitarmos tantos lugares. Mas, sinceramente, estamos sendo supervalorizados.
- Como assim?
- As coisas da existência possuem sua imagem, é verdade. E é importante que se organize a superfície da vida, a aparência das criaturas humanas, tão cheias de vontades. Mas a existência não é feita só de superfícies. As coisas têm imagem, mas também possuem função, propósito, história. A espécie humana sangra e sonha, para além do regime superficial das aparências.
- Como se a imagem da vida importasse mais que tudo?
- Como se a imagem da vida importasse mais que tudo. Nossa popularidade, a popularidade dos espelhos, reflete exatamente isso: a vitória da imagem da existência sobre a existência propriamente dita.
- Puxa, que coisa complexa... – disse a Menina, estupefata.
- Também acho. O que me leva a concluir: nosso trabalho de espelhos é muito valorizado atualmente. Lembre-se sempre disso.
A Menina sorriu em resposta ao conselho do Espelho e se despediu, não sem antes dar uma olhadinha no seu reflexo e ajeitar seu black.

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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

22. A Menina e o Cachorro do Carroceiro

- Vocês trabalham o dia inteiro? – perguntou a Menina, espantada.
- Praticamente sim. – respondeu o Cachorro do Carroceiro, com disposição. – Acordamos antes do dia se levantar e voltamos para casa quando a noite já avançou. Trabalhamos de sol a sol, dirigindo nossa carroça pelas ruas da cidade apressada. Quase não temos descanso, meu dono e eu.
- E o que vocês fazem?
- Pescamos em meio ao lixo tudo aquilo que pode ser reciclado. Recolhemos o que pode ser aproveitado do que os comércios e casas jogam fora. Passamos o dia circulando por aí, apanhando esses materiais e vendendo nos centros de reciclagem. Nosso veículo de trabalho não polui. Ao contrário, recicla. – disse o Cachorro do Carroceiro, com inteligência.
- Porque vocês precisam trabalhar tanto se fazem uma coisa tão importante? – perguntou a Menina, sem entender.
- Porque o mundo não é um lugar de igualdades, Menina. Aqueles que habitam o lado oposto da riqueza só conseguem sobreviver com muito esforço. Nós, cachorros de carroceiros, junto de nossos donos, fazemos nossa existência desse lugar. Nosso trabalho e esforço valem muito pouco.
- Eu fico triste por vocês.
- Por favor, não faça isso. É verdade, reciclamos toneladas em troca de centavos, vivemos agressões de todos os tipos, trabalhamos 10, 12 horas por dia, mas mesmo assim, mesmo assim temos uma vida, para além da tristeza do nosso cansaço. Conhecemos os outros carroceiros com seus cachorros, caminhamos lado a lado com as outras existências que se fazem na sombra dos palácios. E assim escrevemos nossa presença na cidade e na História. É apoiado em nossos pares que fazemos nosso cotidiano, Menina, que erguemos nossas famílias, comunidades, nossa cultura de gente simples, nascida da falta, filha da miséria, mas cheia de vida e luta.
- Tudo isso vocês carregam em suas carroças?
- Tudo isso carregamos em nossas carroças. – concluiu o Cachorro do Carroceiro, com simplicidade. – Trabalhando de sol a sol sem descanso.
A Menina se despediu do cachorro do carroceiro, que abanou o rabo e partiu, junto do seu dono. Enquanto se afastavam a Menina ficou ali, parada, observando o caminhar da carroça, feita de papelões, cansaços, marmitas e sonhos.

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segunda-feira, 12 de setembro de 2016

21. A Menina e a Moeda

- Então vocês mandam no mundo? – perguntou a Menina, assombrada.
- Sim e não. – respondeu a Moeda, com rigor. – Nós, moedas e notas, criaturas do dinheiro, somos as ferramentas usadas para isso.
- Isso o quê?
- Mandar no mundo, dominá-lo. Nos dias de hoje, mais do que nunca, é em nosso trabalho que se apoiam os donos de tudo.
- E qual é esse trabalho?
- Traduzir o mundo para nossa linguagem, a linguagem do dinheiro. Esta é nossa principal função: dizer no alfabeto dos preços e valores todas as coisas da existência. Catalogar no dialeto do Mercado tudo quanto ainda não tenha sido catalogado. Eis nosso trabalho: nomear todos os aspectos que fazem a vida em moedas, notas e cifras.
- Mas que coisa engenhosa!
- Você nem imagina, Menina. – disse a Moeda, com eficiência. – Nunca pensávamos que nosso trabalho iria tão longe! Atualmente, coisas que algum tempo não imaginávamos como nomear já estão aí, traduzidas para nossa linguagem de valores e lucros.
- Que tipo de coisas?
- Toda sorte de coisas: objetos, serviços, sonhos, afetos, desejos, modos de vida... Basicamente, tudo. Colonizamos muitos dos aspectos da vida. Estamos a um passo de nomear todas as coisas da existência na linguagem do dinheiro. Não temos limite para nossa potência de catalogar tudo.
- Mas isso não é terrível?!
- Depende do ponto de vista. Para aqueles que possuem o controle do nosso trabalho de moedas e notas, os engenheiros que operam e inventam a linguagem do dinheiro, para esses as coisas vão muito bem.
A Menina permaneceu em silêncio, perplexa. Com a Moeda na mão pensava no futuro, em um tempo em que todas as coisas tenham sua etiqueta de preço, em que os sonhos fiquem à venda nas prateleiras dos supermercados, em que nossos desejos mais secretos sejam planejados pelos donos do dinheiro.
Ainda perplexa se despediu da Moeda.
E comprou um chocolate.

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segunda-feira, 5 de setembro de 2016

20. A Menina e o Bicho-Preguiça

- Você não tem vontade de fazer as coisas de um jeito mais agitado? – perguntou a Menina, curiosa.
- Diversas vezes. – respondeu o Bicho-Preguiça, com certo pesar. – Alguns dias acordo com uma vontade de fazer tudo de um jeito apressado, urgente, cheio de energia. Mas então me lembro do importante trabalho que tenho de realizar e desisto.
- Qual trabalho?
- O trabalho que todo bicho-preguiça faz, nosso trabalho.
- E que trabalho seria este?
- Não está claro? Operar a preguiça, descansar. Eis nossa tarefa de bichos-preguiças: realizar todas as coisas da existência com o mínimo de esforço, o menor gasto de energia, sem a menor sombra de irritação ou ansiedade.
- Que moleza de trabalho, hein?
- Aí que você se engana, Menina. – respondeu o Bicho-Preguiça, com sabedoria. – Nesses tempos que estamos é cada vez mais difícil operar a preguiça, fabricar o descanso. Nunca as coisas pareceram tão urgentes, apressadas, como se existir fosse um ato de produtividade. Todos sentem muita pressão nas costas. Nunca nosso trabalho de bichos-preguiças foi tão importante.
- Por quê?
- Porque com nosso trabalho lembramos as coisas da existência que a pressa é só mais um jeito de fazer as coisas, só mais um modo de fabricarmos a vida. Nós, bichos-preguiças, somos a lembrança permanente de que os acontecimentos podem ter mais calma. Em suma, servimos para lembrar a necessária preguiça de todas as coisas.
- A necessária preguiça de todas as coisas... – repetiu a Menina, pensativa. E se despediu do Bicho Preguiça, que acenou vagarosamente e, com toda a calma do mundo, escalou a árvore para começar seu dia.
No resto da manhã, a Menina ficou à toa. Sentou-se em um canto qualquer e, como num ato vital, mas sem esforço, deitou na grama, preguiçosamente. E ficou ali, arrastando o dia, desnecessariamente olhando os acasos da vida.

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