segunda-feira, 25 de julho de 2016

14. A Menina e o Piano

- Como é viver fazendo música? – perguntou a Menina ao Piano.
- É uma coisa bastante cansativa. É com o desgaste das nossas teclas, com as batidas das nossas engrenagens, que a música pode ser fabricada. É um trabalho árduo, mas fazemos sem reclamar ou desafinar.
- Eu pensava que era uma coisa maravilhosa viver fazendo música. – disse sinceramente a Menina.
- Tem seus momentos. – respondeu o Piano, acolhedor. – Mas lembre sempre, Menina: nem só de sons memoráveis vive um piano. É exatamente o contrário disso. Os instantes de brilho, aqueles em que a música ressoa na sua forma mais potente, são exatamente isso, instantes.
- E o resto do tempo?
- O resto do tempo vivemos imersos no cotidiano exigente e cansativo como o de qualquer trabalho. Na maior parte do tempo somos preenchidos por rotinas de estudos de escalas, músicas repetidas até o limite, criações truncadas, um dia-a-dia ocupado e repetitivo como qualquer outro. O que é óbvio. É da rotina trabalhosa que podem emergir os instantes de brilho.
- Mas a música é uma coisa única! – respondeu a Menina, com admiração.
- Única como são únicas todas as coisas que fazem a vida. A música, Menina, é só mais um dos elementos que fazem a existência. Nem mais, nem menos.
- Eu gosto muito de música!
- Gratidão por isso. É por conta de pessoas como você que os pianos seguem existindo.
A Menina sorriu. Depois, pediu licença e tocou o Piano. Bateu cada tecla, uma a uma, como se saboreasse um doce. E se despediu, feliz pelo encontro.
Na volta para sua casa, a Menina só conseguia agradecer. Agradecer por todas as criaturas que, apesar de todas as dificuldades, fabricam a música.
E cantou uma velha cantiga que aprendera com sua avó.

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segunda-feira, 18 de julho de 2016

13. A Menina e a Concha Marinha

- Como é ter o mar dentro de você? – perguntou a Menina, encantada.
- É uma coisa que muda constantemente. – respondeu a Concha Marinha, com naturalidade. – O mar que carregamos dentro de nossas cascas varia dia a dia. Em alguns momentos é um mar calmo e sereno, um barulho constante, tranquilo. Às vezes é violento e destrutivo, de modo que se você, Menina, escutasse uma concha em um dia desses, ouviria um barulho forte e ruidoso.
- Então vocês carregam o mar para todos os lugares?
- Não, Menina. Nós, conchas marinhas, levamos apenas o seu eco, sua lembrança. Ao mar pertencemos, e quando do mar nos afastamos levamos o relato de sua imensidão.
- E por que fazem isso?
- Você já tocou em uma estrela?
- Não...
- Então pode me compreender. O mar é imenso e único, mas não é distante, como a galáxia, por exemplo. O mar é imenso, mas é um imenso possível. Por isso levamos o seu barulho: temos o dever de lembrar o mar e toda sua vastidão possível. Além disso, o som que levamos é um lamento, uma espécie de canto, de saudade. É a forma que nós, conchas marinhas, usamos para falar desse desejo de retornar ao mar, presente em todas as criaturas que já o conheceram.
- O mar é mesmo muito bonito!
- E a ele pertencemos.
- Posso ouvir um pouco?
- É claro.
A Menina então levou a Concha Marinha até o ouvido e escutou o mar, profundamente. Depois, se despediu.
Enquanto ia embora, a Menina ficou pensando. Pensava que também ela era um pouco concha, que também ela carregava dentro de si o mar, um verdadeiro oceano. E sentou na areia, com seus sentimentos de concha, enquanto a noite caía sobre a praia.
Imensamente.

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segunda-feira, 11 de julho de 2016

12. A Menina e o Pinscher da Madame

- Você tem muitos privilégios, não é mesmo? – perguntou a Menina, ingenuamente.
- Com certeza. – respondeu o Pinscher da Madame, com empáfia. – Tenho todos os privilégios que um cachorro do meu porte merece.
- Eu não entendo, você é tão pequenininho...
- Estou falando da minha raça, Menininha. Sou de uma linhagem de pinschers da aristocracia inglesa.
- E o que isso significa?
- Que sou um cachorro que custa caro, muito caro, e por isso sou merecedor de todos os luxos que cercam a minha vida.
- Que tipos de luxo?
- Todos. Todos os privilégios que podem ser dados a um pinscher valioso como eu. Minha coleira é feita de ouro e brilhantes, da grife mais cara do mundo. A cama onde eu durmo, de estilo clássico, custou mais dinheiro do que a criada humana, que me serve, ganha em meses. Minha ração é importada diretamente da Escócia, feita com carne de ganso.
- Sabia que existem milhares de cachorros morrendo de frio na rua?
- É claro que sei. Quem é que não sabe? As coisas são assim, Menininha. O mundo não é um lugar justo. Para se fazer um cachorro rico é preciso dez mil cachorros famintos.
- Você não se sente mal com isso?
- Porque eu me sentiria? – desdenhou o Pinscher da Madame. – Acho que você tem assistido desenhos demais. Quem é que não quer uma vida uma vida de luxos? Comer as melhores comidas, dormir nas melhores camas, viajar para as paisagens mais bonitas... Todos querem. Poucos podem.
- Mas e se os cachorros abandonados um dia se irritarem? E se vierem atrás de você com seus privilégios? – perguntou a Menina, intrigada.
- Isso não acontece. Para isso existem a carrocinha, os serviços de zoonose, os muros da mansão, os seguranças particulares da Madame. Para manter os cães miseráveis no seu devido lugar.
- Compreendo... – respondeu a Menina, pensativa. E se despediu do Pinscher da Madame, que começava a se preparar para ir a uma festa de cães da alta sociedade.
Naquela noite, a Menina dormiu mal. Agitada, se revirava na cama, suava. Nos poucos momentos que conseguia dormir, tinha sonhos intensos. Sonhava com os cachorros de rua.
E sua revolução.

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segunda-feira, 4 de julho de 2016

11. A Menina e a Aranha Tecedeira

- Como é passar o dia fazendo armadilhas? – perguntou a Menina a Aranha Tecedeira.
- Trabalhoso. Passo horas e horas ininterruptas do dia tecendo minhas teias para cobrir um tantinho assim de espaço. Para construir uma boa armadilha, Menina, é preciso muito tempo de árduo trabalho.
- As teias que você tece são bem bonitas! – disse a Menina, com sinceridade.
- Toda armadilha tem sua parcela de beleza. Em alguns momentos, depois de passar dias e dias tecendo de um galho até o outro, olho para o trabalho pronto e acho determinada teia particularmente bonita. Nesses momentos, sinto orgulho. – disse a Aranha Tecedeira, contemplativa. – Mas a beleza, definitivamente, é o que menos importa em uma armadilha, Menina.
- E qual a coisa mais importante?
- Não é óbvio? Sua funcionalidade. De nada adianta a beleza de uma teia se ela não capturar moscas para garantir o jantar. Assim são as armadilhas: devem capturar seu alvo, ou não servem para nada.
- Tecer armadilhas me parece um trabalho tão ardiloso. – disse a Menina, pesarosa.
- E é mesmo. As armadilhas são, por definição, ardilosas. São feitas de esperteza e traição. Mas isso não faz de nós criaturas traiçoeiras. Ao contrário disso. Nós, aranhas tecedeiras, somos absolutamente leais ao nosso trabalho. Fazemos nossas armadilhas todos os dias, sem descanso. Jamais traímos nosso dever de aranhas.
- Antes de eu ir embora, posso ver você tecendo um pouco?
- É claro que sim, Menina. – respondeu a Aranha Tecedeira com generosidade. E se despediu, já logo voltando para o seu trabalho de tecer teias.
A Menina sorriu, se sentou, e silenciosamente observou a aranha com seu trabalho.
E ficou ali, pensando na vida. E suas armadilhas.

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