segunda-feira, 27 de junho de 2016

10. A Menina e a Pomba Urbana

- Eu não estou entendendo nada do que você está falando! – exclamou a Menina, aflita.
- Caga na cabeça! Caga na cabeça! – continuou a Pomba Urbana, em fluxo. – São 150 pombos para um velhinho jogando migalhas! Quem não come não vive! Cuidado com o carro! Já era: pomba no asfalto!
- Eu não consigo com toda essa loucura... – desabafou a Menina.
- A loucura não é nossa, Menina. – respondeu a Pomba Urbana, subitamente profética. – Nós, pombas urbanas, somos meros espelhos, reflexos orgânicos da cidade agitada.
- Então você tem momentos de lucidez?
- Menino com estilingue no telhado! Desviar da roda! Desvia do gato! Nossos ninhos ficam escondidos no alto, nas dobras dos viadutos e estátuas. As pombas filhotes piam, piam...
- Não deve ser uma vida fácil. – Concluiu a Menina, intrigada.
- A vida não é uma coisa medida em facilidades, Menina. A sobrevivência que é assim, há momentos fáceis e momentos difíceis de sobreviver. Mas a vida... A vida...
- A vida...? – continuou a Menina, esperando uma resposta.
- Migalhas! Senhora a oeste jogando migalhas! – exclamou a Pomba Urbana. E foi embora, sem se despedir, voando em direção ao outro lado da praça para disputar as migalhas jogadas pela velhinha, junto com dezenas de outras pombas urbanas.

Naquela noite, a Menina teve um sonho estranho. Sonhou que a cidade inteira era um grande manicômio com muros bem altos e ela, a Menina, era uma pomba, que alçava voo com suas asas. E voava. Para além dos muros.

[O livro ilustrado das Conversas da Menina com o Mundo, com todos os 25 contos, numa linda edição em capa dura, está a venda na Livraria Cultura, nesse link aqui]


terça-feira, 21 de junho de 2016

9. A Menina e o Relógio Carrilhão

- Como é passar a vida contando o tempo? – perguntou a Menina ao Relógio Carrilhão.
- Essa pergunta é equivocada, Menina. Nós, relógios, não contamos o tempo. Nós o fabricamos. É com o árduo esforço das nossas engrenagens precisas que o tempo corre, corretamente fabricado.
- Como é possível fabricar o tempo?
- E você acha que a coisa acontece como? O tempo, Menina, é mais um dos inventos da humanidade, engenhosa em capturar todas as coisas. O tempo é uma coisa fabricada, por mais que isso te espante. É um esforço coordenado por toda gente todo dia.
- Mas o tempo passa para todas as coisas, e não só para a humanidade! – retrucou a Menina, perspicaz.
- Mas nem todas as coisas nomeiam e catalogam o tempo como faz a humanidade, Menina. Ou você acha que uma montanha conta o tempo em horas, minutos e segundos? O tempo como conhecemos é uma invenção, uma excelente invenção, aliás.
- Isso é assombroso... – respondeu a Menina, pensativa. – Toda nossa vida é organizada pelas horas, minutos e segundos.
- Para você ver o poder de uma invenção desse tipo. E o tamanho da importância do nosso trabalho de relógios.
- É mesmo um trabalho de muita responsabilidade. – falou a Menina, com admiração. – Que horas são?
O Relógio Carrilhão respondeu com precisão para a Menina, que agradeceu e se despediu, deixando-o com seu importante trabalho.
Naquela manhã, a Menina passou o intervalo inteiro inventando mundos imaginários. Criava, na sua imaginação, um lugar onde a humanidade não tivesse fabricado o tempo. Um mundo em que a passagem das coisas era nomeada de outra forma, percebida de outro jeito.
Até que o sinal tocou. Era o tempo: ele havia acabado.

[O livro ilustrado das Conversas da Menina com o Mundo, com todos os 25 contos, numa linda edição em capa dura, está a venda na Livraria Cultura, nesse link aqui ]


segunda-feira, 13 de junho de 2016

8. A Menina e a Rosa Vermelha

- Você não se cansa de parecer tão frágil? – perguntou a Menina, delicadamente.
- E isso é um problema? – retrucou a Rosa Vermelha, gentilmente.
- Não sei dizer ao certo... Mas me parece perigoso ser tão frágil.
- Isso porque vivemos em um tempo de brutalidades, Menina. Por isso a delicadeza parece um defeito. Mas é justamente o contrário: a fragilidade é fruto de muito trabalho.
- Mas qualquer pessoa pode desmanchar suas pétalas com o menor descuido...
- É verdade. Contra violência não há diálogo possível, senão a violência. Por isso nós, rosas vermelhas, temos nossos espinhos.
- Para furar dedos violentos?
- Para nos proteger e garantir o espaço que precisamos para desenvolver nossa fragilidade. É com ela que nós, rosas vermelhas, acolhemos as pequenas coisas do mundo, suspiros, olhares, intenções, e por isso, podemos ser um símbolo-gesto do amor. É nossa fragilidade que nos permite perceber os outros seres delicados, as outras existências frágeis que fazem a vida, e por isso, podemos ser um símbolo-gesto de uma revolução.
- Tudo a partir da fragilidade?
- Tudo a partir da fragilidade. Quando alcançamos o máximo da nossa delicadeza é quando realizamos o máximo da nossa potência! Esse é o momento em que nós, rosas vermelhas, exalamos o máximo do nosso perfume.
- Você é mesmo muito linda! – respondeu a Menina, com admiração. – E infinitamente forte na sua fragilidade. Gratidão por isso.
E se despediram a Menina e a Rosa Vermelha.
Naquela noite, a Menina fez uma lista no seu caderno, com todas as suas fragilidades. Era uma lista grande. Depois, foi dormir. Morrendo de orgulho de si mesma e de todas as suas delicadezas.

[O lançamento do livro é sábado agora!
18/06 | 15h | Setor Infantil da Livraria Cultura do Conjunto Nacional
O evento de lançamento está aqui:https://www.facebook.com/events/167866353616629/
Mais informações no link da Livraria Cultura: http://www.livrariacultura.com.br/loja/livraria-cultura-conjunto-nacional-2000003/evento/lancamento-do-livro-conversas-da-menina-com-o-mundo-do-autor-rafael-presto-6007517 ]


segunda-feira, 6 de junho de 2016

7. A Menina e o Rato de Esgoto

- Mas você não tem muitas doenças? – perguntou a Menina, sem conseguir esconder seu receio.
- Sim, diversas. Só não sei o nome de todas. – respondeu o Rato de Esgoto, com naturalidade.
- Isso não é muito perigoso?!
- O suficiente, mas nada que fuja da normalidade de qualquer uma das criaturas que vivem nas profundezas da cidade. Minhas doenças são tão perigosas quanto as doenças de um cachorro sarnento, ou de uma pomba de praça. Somos iguais em doença.
- E em que vocês são diferentes? – disse a Menina, já com menos receio.
- No ódio. Somos diferentes porque recebemos mais ódio da humanidade do que qualquer outra das criaturas do submundo. Um cão sarnento vez ou outra ganha um afago, as pombas ganham migalhas de pão apesar da sua condição. Mas para nós, ratos de esgoto, só são oferecidos gestos de ódio.
 - E por que isso acontece? – questionou a Menina, aflita.
 - A humanidade não precisa de muitos motivos para cultivar o ódio. Ao contrário, precisa dele. O ódio é o motor de muitas das realizações da espécie humana.
- Que coisa terrível...
- Eu prefiro pensar que é uma condição. – respondeu o Rato de Esgoto. – Sabemos que em nós, criaturas do submundo, se deposita o ódio da humanidade que caminha tranquilamente na luz do dia. Por isso, sobrevivemos com cuidado dos restos que conseguimos fisgar. Mas lá embaixo, longe dos olhos dos homens e mulheres, temos nossa paz e nosso império. Lá, entre canos de esgoto e toda sorte de lixos e dejetos, fazemos nossa vida, com nossas festas, nossos ritos, nossos acasalamentos.
- O mundo dos ratos e ratas de esgoto...
- Nosso mundo, que persiste, a despeito da humanidade com seu ódio. Bem, Menina, preciso ir. Gratidão por sua humildade.
- Eu que fiz uma ideia errada de você. – disse a Menina, sem receio algum.
- Então não tem mais medo de mim?
- Não, nenhum.

- Pois deveria, Menina. – finalizou o Rato de Esgoto. – Deveria.

[Já estamos com a data de lançamento do livro marcada! Sábado, 18/06 | 15h | Livraria Cultura do Conjunto Nacional. O evento de lançamento está aqui: https://www.facebook.com/events/167866353616629/
Mais informações no link da Livraria Cultura:http://www.livrariacultura.com.br/…/lancamento-do-livro-con… ]


6. A Menina e a Velha Árvore

- Então você já viu passarem muitos anos? – perguntou a Menina, com admiração.
- Alguns... – respondeu a Velha Árvore, afetiva – Mas estou longe de ser a árvore mais velha desse parque. Não muito longe daqui, existe um jequitibá de mais de 300 anos.
- E como é viver tanto tempo?
- Não há nisso nada de muito especial. Já vivi muitos invernos e vi mudar o ecossistema diversas vezes. Em algumas noites, sonho com tempos antigos, quando as florestas ocupavam todas as partes e a espécie humana não tinha essa fome tão voraz de agora.
- Puxa... Que incrível!
- É como eu disse, não existe mérito algum em viver mais ou menos anos. Se puder aprender alguma coisa, foi isso: eu, que sou uma árvore, tenho o exato mesmo tempo que você, Menina, o tempo de uma vida.
Um silêncio antigo assoprou pelo parque. A Menina não disse palavra. A Velha Árvore continuou.
- Uma caverna leva 200 mil anos só para nascer. As estrelas vivem bilhões de anos, antes de engolirem a si próprias numa gigantesca explosão de fogo. Algumas borboletas vivem uma semana. E todos vivem o mesmo, Menina, o tempo de uma vida. Nem mais, nem menos.
A Menina continuou quieta. Escutava a vida que acontecia. E abraçou o tronco da boa anciã, profundamente.
- Mas o que te entristece, Velha Árvore? – perguntou a Menina, quebrando o silêncio.

- Pensar nas vidas que são cortadas antes da hora, Menina. – respondeu, profundamente. – Pensar nas vidas que são cortadas antes da hora.

[Já estamos com a data de lançamento do livro marcada! Sábado, 18/06 | 15h | Livraria Cultura do Conjunto Nacional O evento de lançamento está aqui:https://www.facebook.com/events/167866353616629/
Mais informações no link da Livraria Cultura: http://www.livrariacultura.com.br/…/lancamento-do-livro-con… ]