terça-feira, 24 de maio de 2016

5. A Menina e o Leão do Circo

- Não te maltratam demais por aqui? – perguntou a Menina ao Leão do Circo, alarmada.
- Nada muito fora do comum. É verdade, às vezes o domador exagera, é um pouco deprimente passar a maior parte do tempo dentro de uma jaula, mas pelo menos tenho comida todos os dias, banho toda semana. Alguns trapezistas não chegam a tanto. Em um circo, Menina, todos cumprem com sua cota de maus tratos.
- Mas o trapezista é livre para ir, não vive em uma jaula.
- Livre para ir aonde, Menina? – perguntou o leão com ironia. – As criaturas do circo ao circo pertencem. Nós, leões do circo, temos a carne feita de lonas e trapézios, nossos rugidos são os olhos do público brilhando de espanto! Nós, como todos os seres deste lugar, somos comprometidos com o picadeiro.
- Então vocês estão presos ao circo?
- De certa forma... Mas me diga, Menina, qual ser que respira que não carrega suas prisões? Além disso, você esquece do mais importante: o espetáculo! É por ele que ficamos!
- Como assim?
- É difícil dizer... Na maior parte do tempo, viajamos de maneira precária, enfrentamos a fome e o frio. Os espetáculos tornam-se repetitivos, tediosos, com os mesmos estalos de chicote, as mesmas marcas de subir e descer da cadeira, o mesmo rugido de efeito... Mas às vezes... Às vezes, em algumas apresentações, alguma coisa se passa e as almas transbordam! Nesses momentos, fazemos no picadeiro um instante de vida!
- E é por esse instante que vocês do circo passam por tantas provações?
- É por esse instante que o circo permanece vivo. E é por ele que permanecemos no circo. O show tem que continuar!
- O show tem que continuar.
E se despediram a Menina e o Leão do Circo, que já começava a se preparar para o show daquela noite.
A Menina ficou para o espetáculo. E entre lágrimas e sorrisos se encantou com a contorcionista, vibrou com os trapezistas, temeu o leão com seu rugido de rei dos animais.
E foi embora, transbordada de vida.


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4. A Menina e a Formiga Operária

- Você nunca tem vontade de fazer outra coisa? – perguntou a Menina a Formiga Operária.
- Não, nunca. – respondeu sem parar seu árduo trabalho de carregar folhas gigantes até o formigueiro – Por quê? Eu deveria?
- Não sei... Suponho que sim. Eu tenho vontade de tantas coisas... – respondeu a Menina, francamente.
- Isso acontece porque você vê o mundo do seu ponto de vista, Menina. Os humanos são cheios de vontades contraditórias. Nós, formigas operárias, não temos dúvidas: cumprimos com nosso dever de formigas.
- Sem descanso?
- Sem descanso.
- Mas por que tanto trabalho?
- Você teria coragem de pisar em um formigueiro?
- Não... – respondeu a Menina, sem entender muito bem.
- Consegue imaginar uma praça ou um parque sem formigas?
- Não.
- Ficaria tranquila se soubesse que sua casa foi tomada por formigas?
- Não!
- Viu? Percebe a dimensão do nosso poder? Poder das formigas, nosso poder. Nós, que somos tão pequeninas.
- Então vocês trabalham para ter poder?
- Não, Menina, trabalhamos porque é com o trabalho que construímos nossa existência, é com trabalho que persistimos no tempo. Com nosso esforço e suor enfrentamos a vida, e vencemos.
- Sem nunca descansar?
- Sem nunca descansar.
- Entendo completamente. – finalizou a Menina, com seriedade. – Desculpe tomar o seu tempo. Você deve mesmo ter muito o que fazer.
A formiga operária sorriu e rapidamente entrou no formigueiro, sem se despedir, carregando sua folha gigante em seu interminável trabalho de formiga.
Depois daquela conversa, a Menina ficou inquieta. Andou de um lado para o outro a manhã inteirinha, com uma pergunta lhe martelando a cabeça, insistentemente:
“Quando dormem, com o que sonham as formigas?”


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segunda-feira, 9 de maio de 2016

3. A Menina e o Gato de Rua

- Então você já viu morrerem muitos dos seus? – perguntou a Menina, assombrada.
- Inúmeros. – respondeu o Gato de Rua – Da ninhada que fiz parte, dos 6 gatos que naquele dia vieram ao mundo, sou o único que sobreviveu.
- Que horror! – disse a Menina com os olhos cheios de lágrimas.
- Por favor, guarde sua pena para você. Nós, gatos de rua, sabemos do perigo que caminha lado a lado com nossa existência. Ninguém quer a sua piedade por aqui.
- Mas você não se entristece?
- Naturalmente. Quando morre um dos nossos, nós cantamos nossa perda, celebramos nossa tristeza. Fazemos nossas serenatas como uma forma de luto. Mas nunca nos apiedamos.
- Mas tenho pena por você não ter uma casa, um dono...
- Fui pego da rua quando era filhote. Tive uma casa e um dono. Por mais que você não compreenda, Menina, muitos dos gatos escolhem a rua, assim como eu fiz.
- Mas não é uma vida de muito risco?
- Essa é uma pergunta tola, Menina. O risco é o motivo para nós, gatos, escolhermos a rua.
- Então vocês não temem a morte?
- Não, Menina: nós amamos a vida. Nos arriscamos tanto porque sabemos que as delícias de viver se escondem do lado de lá da segurança, nos quintais vigiados por cachorros, nas lixeiras depois dos arames, nos ninhos no topo das árvores. O risco, Menina, é o motor da vida.
- Você tem mesmo muita coragem... – respondeu a Menina com admiração e fez um último afago no Gato de Rua, antes de se despedir.
Depois daquela conversa, a Menina ficou inquieta. Pensava nos inúmeros aprendizados de segurança que recebera ao longo de sua educação. Pensava na vida que fugia enquanto ela, a Menina, seguia os protocolos de segurança do seu cotidiano. No dia seguinte, ao invés de apanhar o ônibus, sem contar para ninguém, a Menina voltou a pé da sua escola.
Apesar do risco.

[terceiro conto da Menina republicado e repaginado, caminhando para o lançamento do livro das Conversas da Menina com o Mundo! Já temos data para entrega dos livros pela gráfica: dia 20/05/2016! Agora está perto!]


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segunda-feira, 2 de maio de 2016

2. A Menina e o Cão de Guarda da Policia

- Você nunca se cansa? – perguntou a Menina ao Cão de Guarda da Policia.
- Eu não posso me cansar. – respondeu o policial canino – É quando nos cansamos que o inimigo vem.
- E quem são os inimigos?
- Essa pergunta não faz o menor sentido, Menina. Nós, cães da policia, não somos treinados para reconhecer o inimigo.
- Então vocês são treinados para o quê?
- Para reconhecer os aliados.
- E todo o resto é inimigo?
- Todo o resto é uma ameaça. Por isso, não podemos descansar.
- Mas não é uma vida de muito ódio? – perguntou a Menina, sinceramente preocupada.
- Também nisso somos treinados. – respondeu o cão de guarda. – Você, Menina, precisa compreender o ódio de outra forma. Para nós, policiais caninos, o ódio não é um sentimento, é uma ferramenta. Sem ela, não é possível realizar nosso trabalho.
- Então porque você não rosnou para mim?
- Porque mesmo o ódio tem suas exceções.
- Compreendo... – Respondeu pensativa. – Obrigada por isso.
E se despediu do Cão de Guarda da Policia, que vigiou atentamente os passos da Menina enquanto ela ia embora.
Naquela noite, a preocupação não deixou a Menina dormir. Pensava no futuro, em um tempo em que todos os afetos tenham virado ferramentas, em que as pessoas caminharão por aí, ocas, mecanicamente apressadas com suas caixas de utensílios sentimentais.
E cantou. Cantou sua música predileta.
E encheu seu quarto de afeto.
[segundo conto da Menina republicado e repaginado, caminhando para o lançamento do livro das Conversas da Menina com o Mundo! Previsão de lançamento: segunda quinzena de maio! Tá chegando!]