segunda-feira, 27 de julho de 2015

20. A Menina e o Bicho-Preguiça

- Mas você não tem vontade de fazer as coisas de um jeito mais agitado? – perguntou a Menina, curiosa.
- Diversas vezes. – respondeu o Bicho-Preguiça, com certo pesar. – Alguns dias acordo com uma vontade de fazer tudo de um jeito apressado, urgente, cheio de energia. Mas então lembro do importante trabalho que tenho de realizar, e desisto.
- Qual trabalho?
- O trabalho que todo bicho-preguiça faz, nosso trabalho.
- E que trabalho seria este?
- Não está claro? Operar a preguiça, descansar. Eis nossa tarefa de bichos-preguiças: realizar todas as coisas da existência com o mínimo de esforço, o menor gasto de energia, sem a menor sombra de irritação ou ansiedade.
- Que moleza de trabalho, hein?
- Aí que você se engana, Menina. – respondeu o Bicho-Preguiça, com sabedoria. – Nesses tempos que estamos é cada vez mais difícil operar a preguiça, fabricar o descanso. Nunca as coisas pareceram tão urgentes, apressadas, como se existir fosse um ato de produtividade. Todos sentem muita pressão nas costas. Nunca nosso trabalho de bichos-preguiças foi tão importante.
- Por que?
- Por que com nosso trabalho lembramos as coisas da existência que a pressa é só mais um jeito de fazer as coisas, só mais um modo de fabricarmos a vida. Nós, bichos-preguiças, somos a lembrança permanente de que os acontecimentos podem ter mais calma. Em suma, servimos para lembrar a necessária preguiça de todas as coisas.
- A necessária preguiça de todas as coisas... – repetiu a Menina, pensativa. E se despediu do Bicho Preguiça, que acenou vagarosamente e, com toda a calma do mundo, escalou a árvore para começar seu dia.
No resto da manhã, a Menina ficou à toa. Sentou-se em um canto qualquer e, como num ato vital, mas sem esforço, deitou na grama, preguiçosamente. E ficou ali, arrastando o dia.
Desnecessariamente olhando os acasos da vida.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Começo das Despedidas

Leitoras e leitores das Conversas da Menina com o Mundo,

Excepcionalmente esta semana não será publicado nenhum conto nesta página. Ao invés disso, o que se tem é um comunicado, dado com pesar: as publicações das Conversas da Menina com o Mundo caminham para seu fim.
Isso mesmo: o conto de número 25 será o último conto publicado.
Este projeto tinha esse objetivo desde o início. A meta era conseguir acumular 25 contos, escrevendo, desenhando, digitalizando e colorindo conto a conto, segunda a segunda, durante 6 meses consecutivos. E aqui estamos. A 6 contos do fim. As Conversas da Menina com o Mundo são este acumulo, parido com horas de trabalho, esforço e poesia.
O pique para tanto trabalho veio de um só lugar: a recepção maravilhosa que os contos tiveram nos meios virtuais. Os elogios, comentários, perguntas, depoimentos recebidos semana a semana, publicação a publicação. Acima de tudo, palavras de incentivo. E isso é o mais gratificante de todo esses escritos: saber que os esforços de algumas palavras e desenhos, às vezes, encontram acolhida em corações e mentes generosas.
Gratidão por todas e todos que acompanham as publicações das Conversas da Menina com o Mundo.
Findado este ciclo, terão os próximos passos: criar um site para abrigar os contos, diagramar todo o trabalho em um livro, construir espaço de divulgação do trabalho em revistas, jornais, publicações etc. Coisas que este pobre autor não tem condições de realizar somente com seus esforços. Veremos por onde este barco anda.
Por enquanto, rememos:
A todas e todos que seguem os contos, até semana que vem. Voltamos a normalidade das publicações, até o conto de número 25.
E então será mesmo uma despedida.
Por enquanto, é só o começo dela.

Há braços,

Rafael Presto
Autor das Conversas da Menina com o Mundo


segunda-feira, 13 de julho de 2015

19. A Menina e o Verme do Cemitério

- Mas então você convive o tempo todo com gente morta? – perguntou a Menina, espantada.
- Não! – exclamou o Verme do Cemitério. – Quem é que gosta de conviver com gente morta? Nós, vermes do cemitério, gostamos de comer os mortos.
- Que horror!
- Isso porque vocês, humanos, cercam a morte de sentimentalidades. É só verem um cadáver que, pronto, já ficam cheios de topos os tipos de afetos. Nós, vermes do cemitério, não. Quando vemos um cadáver pensamos: comida!
- Como você é insensível... – respondeu a Menina.
- Materialista.  Nós, vermes do cemitério, somos materialistas. E, afinal, vivemos de nos alimentar dos mortos. Mas isso não interfere na nossa sensibilidade. Existe poesia nisso que fazemos.
- Como assim?
- Comemos a morte e, assim, reciclamos a vida. Os cadáveres que digerimos retornam à terra, para que possam ser absorvidos pelas raízes das árvores ou da grama. Fazemos parte desse ciclo geral das coisas, do movimento da existência, com seus nascimentos, transformações e mortes.
- É verdade, há nisso muita poesia.
- Estou te dizendo.
- Bem, preciso ir. – finalizou a Menina. – Vou deixa-lo com seus mortos. E com seus versos.
- Gratidão. Te desejo o mesmo: siga bem com os seus, Menina.
- Com meus versos?
- Com seus mortos. -  concluiu o Verme do Cemitério. -  Siga bem com seus mortos.

   

segunda-feira, 6 de julho de 2015

18. A Menina e o Muro

- Mas você é muito impositivo. – disse a Menina, instigada.
- E o que você esperava? – respondeu o Muro, com naturalidade. – A imposição é a principal característica que carregamos, nós, muros que separam as propriedades. Nosso trabalho é esse: impor no espaço uma série de recortes.
- E vocês recortam o espaço para que?
- A pergunta certa, Menina, não é para que, e sim, para quem. Recortamos o espaço por desejo da humanidade. Ou pelo menos de uma parte dela. Nós, muros, somos a materialização da vontade de alguns.
- Que vontade?
- Não é óbvio? A vontade de alguns de pegar para si uma parte do espaço. Essa é nossa real função: garantir que os lugares possam ter donos. Não é um trabalho muito bonito, mas fazemos sem reclamar. É com ele que se definem as fronteiras de todas as coisas: países, fazendas, fábricas, prédios. É a dureza de nossas pedras e tijolos que garantem as propriedades do mundo.
- Mas... e as pessoas que não tem espaço algum? Como ficam? – retrucou a Menina.
- Do lado de fora. – disse o Muro, definitivo. – Essa é nossa obrigação fundamental: garantir as desigualdades dos espaços onde a humanidade existe. Cumprimos nosso dever de muros a muitos milênios, desde os primeiros passos da sua espécie.
- Isso é muito sufocante... – falou a Menina, aflita.
- Depende do ponto de vista. Mas lembre-se sempre disso: não existem muros que não possam ser derrubados. – finalizou o Muro. – Nesse mundo, Menina, tudo que tranca, trinca.