segunda-feira, 29 de junho de 2015

17. A Menina e a Vela

- Mas como é consumir a si mesma? – perguntou a Menina, intrigada.
- É um momento de êxtase. – respondeu a Vela, suspirante. – Quando lentamente derretemos para fazer brilhar nossa chama é quando cumprimos com nosso propósito de velas! Nesse momento, vivemos nossa maior alegria.
- Mas vocês não morrem no processo?
- É evidente. É com o custo da nossa existência que fazemos flamejar nossos pavios.
- E você não tem medo de deixar de existir?
- Um pouco. Mas a felicidade de brilhar, mesmo que só por um momento, compensa qualquer receio.
- Como você é corajosa...
- Não é uma questão de coragem, Menina. É uma questão de propósito. Para reluzir, toda existência morre um pouco. É preciso existir com o máximo da possibilidade para marcar o tempo com aquilo que podemos ser. É preciso queimar a vida, intensamente.
- Eu teria medo de queimar até desaparecer...
- Isso porque vocês humanos não gastam a vida em chamas, mas em anos e décadas, contados nos calendários. O seu pavio, Menina, é o tempo. Nós, velas, somos diferentes. Pertencemos a mesma espécie que o sol ou as estrelas: existimos para nos consumir, e nos consumindo relampeamos instantes de claridade universo afora.
- Sua chama é mesmo muito bonita. Como ela se mexe!
- Está dançando. – disse a Vela, sedutora. – Para você.
A Menina sorriu, debruçou sobre a mesa, e ficou ali, observando a Vela com seu fogo, que dançava e dançava. Até que a Menina dormiu. Pensando nos incêndios e brilhos da vida.


segunda-feira, 22 de junho de 2015

16. A Menina e o Televisor

- Mas como é ser um televisor? – perguntou a Menina, curiosa.
- É uma coisa bastante melancólica... – respondeu o Televisor, tristemente. – Apesar de ter sempre a fachada cheia de brilhos e sons, nós, televisores, somos carregados de pesar.
- Eu pensei que vocês tinham orgulho de ser o que são. Praticamente todas as casas tem um televisor. – retrucou a Menina, intrigada.
- E é justamente por isso que somos melancólicos.
- Eu não entendo.
- É complicado. Em primeiro lugar, nós, televisores, sempre transmitimos os mesmos canais. Milhões de casas com milhões de TVs para que se assistam em todos os lugares as mesmas programações. Nenhum telespectador interfere no que nós, televisores, comunicamos. Este é o primeiro motivo da nossa melancolia: nosso trabalho é sempre impositivo, nunca uma troca.
- Puxa...
- O que nos leva ao segundo motivo da nossa melancolia: é impondo nossos brilhos e sons para milhões de corações e mentes que nós, televisores, cumprimos com nosso gigantesco trabalho de manter as coisas da existência da forma como elas estão.
- Eu pensava que o trabalho de um televisor fosse divertir, informar... – disse a Menina, com sinceridade.
- É divertindo e informando que nós, televisores, mostramos o mundo como uma coisa incapaz de ser transformada. Esse é o nosso verdadeiro trabalho. E com ele, convencemos a existência a permanecer como está, inibimos suas transformações. Saber disso Menina, saber disso faz com que todos nós, televisores, sejamos assim, melancólicos.
- Compreendo. – respondeu a Menina, com pesar. E se despediu do Televisor.
Daquele em dia em diante, a Menina passou a assistir à programação dos televisores com muita desconfiança.


segunda-feira, 15 de junho de 2015

15. A Menina e o Caramujo de Jardim

- Mas como é carregar a casa nas costas? – perguntou a Menina, curiosa.
- Tem suas vantagens e desvantagens. – respondeu o Caramujo de Jardim. – Em suma, é um jeito de se levar a vida.
- Quais as vantagens?
- Por levar minha casa nas costas, carrego meu refúgio sempre comigo. Ao menor sinal de chuva, no caso de qualquer ameaça, qualquer surpresa, me recolho para minha residência, em qualquer lugar. Ter sempre um refúgio é um importante recurso.
- E as desvantagens?
- São inúmeras. Por carregar minha casa, não posso ter pressa. Não é possível. Tenho sempre que me arrastar lentamente por aí, como se arrastam os caramujos de jardim. Também por levar a casa nas costas nós não sabemos o que é retornar: somos sempre nômades.
- Como assim?
- Você, Menina, é livre para se aventurar pelo mundo, mas nunca esquece o caminho para sua casa. Mais do que isso: a você é possível retornar. Nós, caramujos de jardim, carregamos o fardo que carregam todas as criaturas nômades: levamos em nossas costas o peso de não ter nunca para onde voltar. Não temos raízes. Pertencemos a todos os lugares, ao mesmo tempo que não pertencemos a lugar nenhum.
- Isso não é muito triste?
- Às vezes. Mas também é bastante libertador. É como eu disse, temos nosso jeito de viver, com suas vantagens e desvantagens. Como você, Menina.
- Compreendo... – disse a Menina. – Preciso ir. Tenha um bom dia.
- Boa volta até sua casa. – finalizou o Caramujo de Jardim, e logo se pôs a rastejar, com sua casa nas costas, em sua caminhada de criatura nômade, sem ponto de chegada. Já a Menina retornou. Como retornam as criaturas que criam raízes em suas casas.


terça-feira, 9 de junho de 2015

14. A Menina e o Piano

- Mas como é viver fazendo música? – perguntou a Menina ao Piano.
- É uma coisa bastante cansativa. É com o desgaste das nossas teclas, com as batidas das nossas engrenagens, que a música pode ser fabricada. É um trabalho árduo, mas fazemos sem reclamar ou desafinar.
- Eu pensava que era uma coisa maravilhosa viver fazendo música... – disse sinceramente a Menina.
- Tem seus momentos. – respondeu o Piano, acolhedor. – Mas lembre sempre, Menina: nem só de sons memoráveis vive um piano. É exatamente o contrário disso. Os instantes de brilho, aqueles em que a música ressoa na sua forma mais potente, são exatamente isso, instantes.
- E o resto do tempo?
- O resto do tempo vivemos imersos no cotidiano exigente e cansativo como o de qualquer trabalho. Na maior parte do tempo, somos preenchidos por rotinas de estudos de escalas, músicas repetidas até o limite, criações truncadas, um dia-a-dia ocupado e repetitivo como qualquer outro. O que é óbvio. É da rotina trabalhosa que pode emergir os instantes de brilho.
- Mas a música é uma coisa única! – respondeu a Menina, com admiração.
- Única como são únicas todas as coisas que fazem a vida. A música, Menina, é só mais um dos elementos que fazem a existência. Nem mais, nem menos.
- Eu gosto muito de música.
- Gratidão por isso. É por conta de pessoas como você que os pianos seguem existindo.
A Menina sorriu. Depois, pediu licença e tocou o Piano. Bateu cada tecla, uma a uma, como se saboreasse um doce. E se despediu, feliz pelo encontro.
Na volta para sua casa, a Menina só conseguia agradecer. Agradecer por todas as criaturas que, apesar de todas as dificuldades, fabricam a música. E cantou.
Uma velha cantiga que aprenderá com sua avó.



segunda-feira, 1 de junho de 2015

13. A Menina e a Concha Marinha

- Mas como é ter o mar dentro de você? – perguntou a Menina, encantada.
- É uma coisa que muda constantemente. – respondeu a Concha Marinha, com naturalidade. – O mar que carregamos dentro de nossas cascas varia dia a dia. Em alguns momentos é um mar calmo e sereno, um barulho constante, tranquilo. Às vezes é violento e destrutivo, de modo que se você, Menina, escutasse uma concha em um dia desses, ouviria um barulho forte e ruidoso.
- Então vocês carregam o mar para todos os lugares?
- Não, Menina. Nós, conchas marinhas, levamos apenas o seu eco, sua lembrança. Ao mar pertencemos, e quando do mar nos afastamos levamos o relato de sua imensidão.
- E por que fazem isso?
- Você já tocou em uma estrela?
- Não... 
- Então pode me compreender. O mar é imenso e único. Mas não é distante, como a galáxia, por exemplo. O mar é imenso, mas é um imenso possível. Por isso levamos o seu barulho: temos o dever de lembrar o mar e toda sua vastidão possível. Além disso, o som que levamos é um lamento, uma espécie de canto, de saudade. É a forma que nós, conchas marinhas, usamos para falar desse desejo de retornar ao mar, presente em todas as criaturas que já o conheceram.
- O mar é mesmo muito bonito...
- E a ele pertencemos.
- Posso ouvir um pouco?
- É claro.
A Menina então levou a Concha Marinha até o ouvido e escutou o mar, profundamente. Depois, se despediu.
Enquanto ia embora, a Menina ficou pensando. Pensava que também ela era um pouco concha, que também ela carregava dentro de si o mar, um verdadeiro oceano. E sentou na areia, com seus sentimentos de concha, enquanto a noite caia sobre a praia.
Imensamente.