quarta-feira, 27 de maio de 2015

12. A Menina e o Pinscher da Madame

- Mas então você tem muitos privilégios? – perguntou a Menina, ingenuamente.
- Com certeza. – respondeu o Pinscher da Madame, com empáfia. – Tenho todos os privilégios que um cachorro do meu porte merece.
- Eu não entendo, você é tão pequenininho...
- Estou falando da minha raça, Menininha. Sou de uma linhagem de pinschers da aristocracia inglesa.
- E o que isso significa?
- Que sou um cachorro que custa caro, muito caro, e por isso sou merecedor de todos os luxos que cercam a minha vida.
- Que tipos de luxo?
- Todos. Todos os privilégios que podem ser dados a um pinscher valioso como eu. Minha coleira é feita de ouro e brilhantes, da grife mais cara do mundo. A cama onde eu durmo, de estilo clássico, custou mais dinheiro do que a criada humana que me serve ganha em meses. Minha ração é importada diretamente da Escócia, feita com carne de ganso.
- Sabia que existem milhares de cachorros morrendo de frio na rua?
- É claro que sei. Quem é que não sabe? As coisas são assim, Menininha. O mundo não é um lugar justo. Para se fazer um cachorro rico é preciso dez mil cachorros famintos.
- Você não se sente mal com isso?
- Porque eu me sentiria? – desdenhou o Pinscher da Madame. – Acho que você tem assistido desenhos demais. Quem é que não quer uma vida uma vida de luxos? Comer as melhores comidas, dormir nas melhores camas, viajar para as paisagens mais bonitas... Todos querem. Poucos podem.
- Mas e se os cachorros abandonados um dia se irritarem? E se vierem atrás de você com seus privilégios? – perguntou a Menina, intrigada.
- Isso não acontece. Para isso existem a carrocinha, os serviços de zoonose, os muros da mansão, os seguranças particulares da Madame. Para manter os cães miseráveis no seu devido lugar.
- Compreendo... – respondeu a Menina, pensativa. E se despediu do Pinscher da Madame, que começava a se preparar para ir a uma festa de cães da alta sociedade.
Naquela noite, a Menina dormiu mal. Agitada, se revirava na cama, suava. Nos poucos momentos que conseguia dormir, teve sonhos intensos. Sonhava com os cachorros de rua.
E sua revolução.




segunda-feira, 18 de maio de 2015

11. A Menina e a Aranha Tecedeira

- Mas como é passar o dia fazendo armadilhas? – perguntou a Menina a Aranha Tecedeira.
- Trabalhoso. Passo horas e horas ininterruptas do dia tecendo minhas teias para cobrir um tantinho assim de espaço. Para construir uma boa armadilha, Menina, é preciso muito tempo de árduo trabalho
- As teias que você tece são bem bonitas... – disse a Menina, com sinceridade.
- Toda armadilha tem sua parcela de beleza. Em alguns momentos, depois de passar dias e dias tecendo de um galho até o outro, olho para o trabalho pronto e acho determinada teia particularmente bonita. Nesses momentos, sinto orgulho. – disse a Aranha Tecedeira, contemplativa. – Mas a beleza, definitivamente, é o que menos importa em uma armadilha, Menina.
- E qual a coisa mais importante?
- Não é óbvio? Sua funcionalidade. De nada adianta a beleza de uma teia se ela não capturar moscas para garantir o jantar. Assim são as armadilhas: devem capturar seu alvo, ou não servem para nada.
- Tecer armadilhas me parece um trabalho tão ardiloso... – disse a Menina, pesarosa.
- E é mesmo. As armadilhas são, por definição, ardilosas. São feitas de esperteza e traição. Mas isso não faz de nós criaturas traiçoeiras. Ao contrário disso. Nós, aranhas tecedeiras, somos absolutamente leais ao nosso trabalho. Fazemos nossas armadilhas todos os dias, sem descanso. Jamais traímos nosso dever de aranhas.
- Antes de eu ir embora, posso ver você tecendo um pouco?
- É claro que sim, Menina. – respondeu a Aranha Tecedeira com generosidade. E se despediu, já logo voltando para o seu trabalho de tecer teias.
A Menina sorriu, se sentou, e silenciosamente observou a aranha com seu trabalho.
E ficou ali, pensando na vida. E suas armadilhas.


segunda-feira, 11 de maio de 2015

10. A Menina e a Pomba Urbana

- Mas eu não estou entendendo nada do que você está falando! – exclamou a Menina, aflita.
- Caga na cabeça! Caga na cabeça! – continuou a Pomba Urbana, em fluxo. – São 150 pombos para um velhinho jogando migalhas! Quem não come não vive! Cuidado com o carro! Já era: pomba no asfalto!
- Eu não consigo com toda essa loucura... – desabafou a Menina.
- A loucura não é nossa, Menina. – respondeu a Pomba Urbana, subitamente profética. – Nós, pombas urbanas, somos meros espelhos, reflexos orgânicos da cidade agitada.
- Então você tem momentos de lucidez?
- Menino com estilingue no telhado! Desviar da roda! Desvia do gato! Nossos ninhos ficam escondidos no alto, nas dobras dos viadutos e estátuas. As pombas filhotes piam, piam...
- Não deve ser uma vida fácil. – Concluiu a Menina, intrigada.
- A vida não é uma coisa medida em facilidades, Menina. A sobrevivência que é assim, há momentos fáceis e momentos difíceis de sobreviver. Mas a vida... A vida...
- A vida...? – continuou a Menina, esperando uma resposta.
- Migalhas! Senhora a oeste jogando migalhas! – exclamou a Pomba Urbana. E foi embora, sem se despedir, voando em direção ao outro lado da praça, junto com dezenas de outras pombas urbanas, disputar as migalhas jogadas pela velhinha.
Naquela noite, a Menina teve um sonho estranho. Sonhou que a cidade inteira era um grande manicômio com muros bem altos e ela, a Menina, era uma pomba, que alçava voo com suas asas. E voava. Para além dos muros.



segunda-feira, 4 de maio de 2015

9. A Menina e o Relógio Carrilhão

- Mas como é passar a vida contando o tempo? – perguntou a Menina ao Relógio Carrilhão.
- Essa pergunta é equivocada, Menina. Nós, relógios, não contamos o tempo. Nós o fabricamos. É com o árduo esforço das nossas engrenagens precisas que o tempo corre, corretamente fabricado.
- Como é possível fabricar o tempo?
- E você acha que a coisa acontece como? O tempo, Menina, é mais um dos inventos da humanidade, engenhosa em capturar todas as coisas. O tempo é uma coisa fabricada, por mais que isso te espante. É um esforço coordenado por toda gente todo dia.
- Mas o tempo passa para todas as coisas, e não só para a humanidade! – retrucou a Menina, perspicaz.
- Mas nem todas as coisas nomeiam e catalogam o tempo como faz a humanidade, Menina. Ou você acha que uma montanha conta o tempo em horas, minutos e segundos? O tempo como conhecemos é uma invenção, uma excelente invenção, aliás.
- Isso é assombroso... – respondeu a Menina, pensativa. – Toda nossa vida é organizada pelas horas, minutos e segundos.
- Para você ver o poder de uma invenção desse tipo. E o tamanho da importância do nosso trabalho de relógios.
- É mesmo um trabalho de muita responsabilidade. – falou a Menina, com admiração. – Que horas são?
O Relógio Carrilhão respondeu com precisão para a Menina, que agradeceu e se despediu, deixando-o com seu importante trabalho.
Naquela manhã, a Menina passou o intervalo inteiro inventando mundos imaginários. Criava, na sua imaginação, um lugar onde a humanidade não tivesse fabricado o tempo. Um mundo em que a passagem das coisas era nomeada de outra forma, percebida de outro jeito.
Até que o sinal tocou. Havia acabado o tempo.


8. A Menina e a Rosa Vermelha

- Mas você não se cansa de parecer tão frágil? – perguntou a Menina, delicadamente.
- E isso é um problema? – retrucou a Rosa Vermelha, gentilmente.
- Não sei dizer ao certo... Mas me parece perigoso ser tão frágil.
- Isso porque vivemos em um tempo de brutalidades, Menina. Por isso a delicadeza parece um defeito. Mas é justamente o contrário: a fragilidade é fruto de muito trabalho.
- Mas qualquer pessoa pode desmanchar suas pétalas com o menor descuido...
- É verdade. Contra violência não a diálogo possível, senão a violência. Por isso nós, rosas vermelhas, temos nossos espinhos.
- Para furar dedos violentos?
- Para nos proteger, e garantir o espaço que precisamos para desenvolver nossa fragilidade. É com ela nós, rosas vermelhas, acolhemos as pequenas coisas do mundo, suspiros, olhares, intenções, e por isso podemos ser um símbolo-gesto do amor. É nossa fragilidade que nos permite perceber os outros seres delicados, as outras existências frágeis que fazem a vida, e por isso podemos ser um símbolo-gesto de uma revolução.
- Tudo a partir da fragilidade?
- Tudo a partir da fragilidade. Quando alcançamos o máximo da nossa delicadeza é quando realizamos o máximo da nossa potência! Esse é o momento em que nós, rosas vermelhas, exalamos o máximo do nosso perfume.
- Você é mesmo muito linda... – respondeu a Menina, com admiração. – E infinitamente forte na sua fragilidade. Gratidão por isso.
E se despediram, a Menina e a Rosa Vermelha.

Naquela noite, a Menina fez uma lista no seu caderno, com todas as suas fragilidades. Era uma lista grande. Depois, foi dormir. Morrendo de orgulho de si mesma e de todas as suas delicadezas.


7. A menina e o Rato de Esgoto

- Mas você não tem muitas doenças? – perguntou a Menina, sem conseguir esconder seu receio.
- Sim, diversas. Mas não sei o nome de todas. – respondeu o Rato de Esgoto, com naturalidade.
- Isso não é muito perigoso?!
- O suficiente, mas nada que fuja da normalidade de qualquer uma das criaturas que vivem nas profundezas da cidade. Minhas doenças são tão perigosas quanto as doenças de um cachorro sarnento, ou de uma pomba de praça. Somos iguais em doença.
- E em que vocês são diferentes? – disse a Menina, já com menos receio.
- No ódio. Somos diferentes porque recebemos mais ódio da humanidade do que qualquer outra das criaturas do submundo. Um cão sarnento vez ou outra ganha um afago, as pombas ganham migalhas de pão apesar da sua condição. Mas para nós, ratos de esgoto, só são oferecidos gestos de ódio.
 - E por que isso acontece? – questionou a Menina, aflita.
 - A humanidade não precisa de muitos motivos para cultivar o ódio. Ao contrário, precisa dele. O ódio é o motor de muitas das realizações da espécie humana.
- Que coisa terrível...
- Eu prefiro pensar que é uma condição. – respondeu o Rato de Esgoto. – Sabemos que em nós, criaturas do submundo, se deposita o ódio da humanidade que caminha tranquilamente na luz do dia. Por isso, sobrevivemos com cuidado dos restos que conseguimos fisgar. Mas lá embaixo, longe dos olhos dos homens e mulheres, temos nossa paz e nosso império. Lá, entre canos de esgoto e toda sorte de lixos e dejetos, fazemos nossa vida, com nossas festas, nossos ritos, nossos acasalamentos.
- O mundo dos ratos e ratas de esgoto...
- Nosso mundo, que persiste, a despeito da humanidade com seu ódio. Bem Menina, preciso ir. Gratidão por sua humildade.
- Eu que fiz uma ideia errada de você... – disse a Menina, sem receio algum.
- Então não tem mais medo de mim?
- Não, nenhum.

- Pois deveria, Menina. – finalizou o Rato de Esgoto. – Deveria.


6. A Menina e a Velha Árvore

- Mas então você já viu passarem muitos anos? – perguntou a Menina, com admiração.
- Alguns... – respondeu a Velha Árvore, afetiva – Mas estou longe de ser a árvore mais velha desse parque. Não muito longe daqui, existe um jequitibá de mais de 300 anos.
- E como é, viver tanto tempo?
- Não há nisso nada de muito especial. Já vivi muitos invernos e vi mudar o ecossistema diversas vezes. Em algumas noites, sonho com tempos antigos, quando as florestas ocupavam todas as partes e a espécie humana não tinha essa fome tão voraz de agora.
- Puxa... Que incrível.
- É como eu disse, não existe mérito algum em viver mais ou menos anos. Se pude aprender alguma coisa foi isso: eu, que sou uma árvore, tenho o exato mesmo tempo que você, Menina: o tempo de uma vida.
Um silêncio antigo assoprou pelo parque. A Menina não disse palavra. A Velha Árvore continuou.
- Uma caverna leva 200 mil anos só para nascer. As estrelas vivem bilhões de anos antes de engolirem a si próprias numa gigantesca explosão de fogo. Algumas borboletas vivem uma semana. E todos vivem o mesmo, Menina, o tempo de uma vida. Nem mais, nem menos.
A Menina continuou quieta. Escutava a vida que acontecia. E abraçou o troco da boa anciã, profundamente.
- Mas o que te entristece, Velha Árvore? – perguntou a Menina, quebrando o silêncio.

- Pensar nas vidas que são cortadas antes da hora, Menina. – respondeu, profundamente. – Pensar nas vidas que são cortadas antes da hora.



5. A Menina e o Leão do Circo

- Mas não te maltratam demais por aqui? – perguntou a Menina ao Leão do Circo, alarmada.
- Nada muito fora do comum. É verdade, as vezes o domador exagera, é um pouco deprimente passar a maior parte do tempo dentro de uma jaula, mas pelo menos tenho comida todos os dias, banho toda semana. Alguns trapezistas não chegam a tanto. Em um circo, Menina, todos cumprem com sua cota de maltratos.
- Mas o trapezista é livre para ir, não vive em uma jaula.
- Livre para ir aonde, Menina? – perguntou o leão com ironia. – As criaturas do circo ao circo pertencem. Nós, leões do circo, temos a carne feita de lonas e trapézios, nossos rugidos são os olhos do público brilhando de espanto! Nós, como todos os seres deste lugar, somos comprometidos com o picadeiro.
- Então vocês estão presos ao circo?
- De certa forma... Mas me diga, Menina, qual ser que respira que não carrega suas prisões? Além disso, você esquece do mais importante: o espetáculo! É por ele que ficamos!
- Como assim?
- É difícil dizer... Na maior parte do tempo, viajamos de maneira precária, enfrentamos a fome e o frio. Os espetáculo tornam-se repetitivos, tediosos, com os mesmos estalos de chicote, as mesmas marcas de subir e descer da cadeira, o mesmo rugido de efeito... Mas as vezes... As vezes, em algumas apresentações, alguma coisa se passa e as almas transbordam! Nesses momentos, fazemos no picadeiro um instante de vida!
- E é por esse instante que vocês do circo passam por tantas provações?
- É por esse instante que o circo permanece vivo. E é por ele que permanecemos no circo. O show tem que continuar!
- O show tem que continuar.
E se despediram, a Menina e o Leão do Circo, que já começava a se preparar para o show daquela noite.
A Menina ficou para o espetáculo. E entre lágrimas e sorrisos se encantou com a contorcionista, vibrou com os trapezistas, temeu o leão com seu rugido de rei dos animais.
E foi embora. Transbordada de vida.