segunda-feira, 31 de agosto de 2015

25. A Menina e o Mundo

- Mas é que eu ando muito preocupada com você... – disse a Menina para o Mundo, sinceramente aflita.
- Eu sei. Eu consigo perceber. Tenho observado suas andanças Menina. E sinceramente, preciso lhe pedir desculpas.
- Por que? – perguntou a Menina, sem entender.
- Para você sobram apenas lições duras, aprendizados feitos de espinho em meio a selva triste. É assim que estou, Menina. – disse o Mundo, com pesar. – Cheio de brutalidade e ódio. Me desculpe por tanta violência em cima de você, ainda tão jovem.
- É verdade. Muitas vezes fico machucada com as conversas e acontecimentos que tenho com as coisas que te habitam, Mundo. Mas mesmo assim, você não me deve desculpas. – respondeu a Menina, acolhedora. – Nós te fazemos todos os dias, Mundo. E se hoje todas as coisas são tão cheias de violência, é porque ainda não aprendemos a te fazer direito.
- Mais uma lição dura para você, Menina. E eu não posso mentir: muitas outras virão. Sempre em tuas caminhadas te sobrarão pedras e ervas daninhas. – respondeu o Mundo, com tristeza.
- Sim, você tem razão. E eu sei que ainda vou me machucar outras vezes nos passos do meu caminho. Mas Mundo, as coisas não são feitas só de dor e tristeza. Às vezes, em alguns momentos, sobram também alegrias, gestos de amizade, jeitos de amar. Nem só de ódio são feitas as coisas da existência, Mundo.
- É tão bom ouvir isso... – respondeu o Mundo, cheio de afeto. – Gratidão por essa conversa, Menina. É bom que você possa cultivar, nos cantos e frestas desse Mundo caduco, alguma poesia e afeto. Isso faz desse Mundo triste um pouco mais feliz. Hoje é você que me ensina uma lição.
- Eu que sigo, Mundo, aprendendo na minha caminhada. – respondeu a Menina, também afetuosa.
E sorriram, a Menina e o Mundo, e em silêncio ficaram, pensando em toda existência que seguia, atribulada em seu árduo trabalho de existir. Depois, se despediram.
A Menina seguiu seu caminho, colhendo conversas com as coisas da existência.
“Adeus!”, pensou o Mundo. Enquanto observava de longe a Menina em sua caminhada.
[assim terminam os contos das Conversas da Menina com o Mundo]


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

24. A Menina e o Nariz de Palhaço

- Mas então sua função é fazer as outras pessoas rirem? – perguntou a Menina ao Nariz de Palhaço, animada.
- Somos a ferramenta usada para isso. Somos apetrechos nas mãos de hábeis artesãos.
- Que artesãos?
- Os palhaços, Menina, os artesãos do riso! Nós, narizes de palhaços, junto aos outros apetrechos, maquiagens, adereços, figurinos, servimos de ferramenta para que os palhaços e palhaças façam o seu trabalho: produzir o riso!
- Parece um trabalho importante.
- E é mesmo. A humanidade sempre tem seus carpinteiros do riso, pessoas cujo trabalho é esse, produzir alegria e felicidade. Cada tempo tem o seu. Os palhaços são tão antigos quanto a mais antiga sociedade humana.
- Uau... – exclamou a Menina, deslumbrada.
- O riso é uma coisa bastante poderosa. – disse o Nariz de Palhaço, compartilhando o deslumbramento da Menina. – Desmancha os contornos rígidos das autoridades, a seriedade dos discursos da ordem, os limites que amarram os corpos e suas relações com o mundo.
- Ser palhaço deve ser uma coisa muito divertida! – falou a Menina, inocente.
- Isso não é verdade.
- Mas vocês não trabalham produzindo o riso?
- Um padeiro deixa de sentir fome por produzir centenas de pães todas as manhãs? Fazer o riso é o ofício dos palhaços e palhaças, Menina, sua forma de fazer a vida. Um trabalho, como outro qualquer, feito de cansaço, dificuldades e algumas alegrias. Nos dias atuais, não é nada fácil ser palhaço.
- É uma coisa triste de se ouvir...
- Um pouco. Mas apesar das inúmeras dificuldades, Menina, ainda resta o riso, apesar de tudo. Ainda resta a felicidade que arrancamos com nosso trabalho de produzir a alegria, que contraria, mesmo que só por um segundo, todo esse triste e lamentável arranjo do mundo. É por isso que seguimos Menina, fabricando as risadas apesar de tudo.
- Eu adoro os palhaços! – disse a Menina, com sincera alegria. E, ao invés de se despedir, vestiu o nariz de palhaço. Ficou assim, o resto do dia.

Palhaçando por aí.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

23. A Menina e o Espelho

- Mas você passa todo o tempo refletindo o mundo? – perguntou a Menina ao Espelho.
- Sim. Esta é nossa principal função de espelhos: refletir em imagem a superfície da existência. Cumprimos com dedicação nosso trabalho. Atualmente, somos bem populares.
- É verdade. Os espelhos habitam quase todos os lugares.
- Temos diversas utilidades. No entanto, nesse tempo que estamos, o que mais fazemos, sem dúvida, é permitir que a espécie humana fique contemplando sua própria imagem, vaidosamente. Nesses dias que vivemos, Menina, as imagens passaram a ter muito valor. – respondeu o Espelho, filosófico.
- Mas quem é que não gosta, pelo menos um pouquinho, de se arrumar na frente do espelho? – retrucou a Menina, com sinceridade.
- Você tem razão. Temos consciência disso. Nós, espelhos, nos orgulhamos do nosso trabalho, do nosso esforço de refletir o mundo, de habitarmos tantos lugares. Mas, sinceramente, estamos sendo supervalorizados.
- Como assim?
- As coisas da existência possuem sua imagem, é verdade. E é importante que se organize a superfície da vida, a aparência das criaturas humanas, tão cheias de vontades. Mas a existência não é feita só de superfícies. As coisas têm imagem, mas também possuem função, propósito, história. A espécie humana sangra e sonha, para além do regime superficial das aparências.
- Como se a imagem da vida importasse mais que tudo?
- Como se a imagem da vida importasse mais que tudo. Nossa popularidade, a popularidade dos espelhos, reflete exatamente isso: a vitória da imagem da existência sobre a existência propriamente dita.
- Puxa, que coisa complexa... – disse a Menina, estupefata.
- Também acho. O que me leva a concluir: nosso trabalho de espelhos é muito valorizado atualmente. Lembre-se sempre disso.
A Menina sorriu em resposta ao conselho do Espelho e se despediu.

Não sem antes dar uma olhadinha no seu reflexo e ajeitar seu black.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

22. A Menina e o Cachorro do Carroceiro

- Mas vocês trabalham o dia inteiro? – perguntou a Menina, espantada.
- Praticamente sim. – respondeu o Cachorro do Carroceiro, com disposição. – Acordamos antes do dia se levantar e voltamos para casa quando a noite já avançou. Trabalhamos de sol a sol, dirigindo nossa carroça pelas ruas da cidade apressada. Quase não temos descanso, meu dono e eu.
- E o que vocês fazem?
- Pescamos em meio ao lixo tudo aquilo que pode ser reciclado. Recolhemos o que pode ser aproveitado do que os comércios e casas jogam fora. Passamos o dia circulando por aí, apanhando esses materiais e vendendo nos centros de reciclagem. Nosso veículo de trabalho não polui. Ao contrário, recicla. – disse o Cachorro do Carroceiro, com inteligência.
- Porque vocês precisam trabalhar tanto se fazem uma coisa tão importante? – perguntou a Menina, sem entender.
- Porque o mundo não é um lugar de igualdades, Menina. Aqueles que habitam o lado oposto da riqueza só conseguem sobreviver com muito esforço. Nós, cachorros de carroceiros, junto de nossos donos, fazemos nossa existência desse lugar. Nosso trabalho e esforço valem muito pouco.    
- Eu fico triste por vocês...
- Por favor, não faça isso. É verdade, reciclamos toneladas em troca de centavos, vivemos agressões de todos os tipos, trabalhamos 10, 12 horas por dia, mas mesmo assim, mesmo assim temos uma vida, para além da tristeza do nosso cansaço. Conhecemos os outros carroceiros com seus cachorros, caminhamos lado a lado com as outras existências que se fazem na sombra dos palácios. E assim escrevemos nossa presença na cidade e na História. É apoiado em nossos pares que fazemos nosso cotidiano, Menina, que erguemos nossas famílias, comunidades, nossa cultura de gente simples, nascida da falta, filha da miséria, mas cheia de vida e luta.
- Tudo isso vocês carregam em suas carroças?
- Tudo isso carregamos em nossas carroças. – concluiu o Cachorro do Carroceiro, com simplicidade. – Trabalhando de sol a sol sem descanso.
A Menina se despediu do cachorro do carroceiro, que abanou o rabo e partiu, junto do seu dono. Enquanto se afastavam a Menina ficou ali, parada, observando o caminhar da carroça.
Feita de papelões, cansaços, marmitas e sonhos.











segunda-feira, 3 de agosto de 2015

21. A Menina e a Moeda

- Mas então vocês mandam no mundo? – perguntou a Menina, assombrada.
- Sim e não. – respondeu a Moeda, com rigor. – Nós, moedas e notas, criaturas do dinheiro, somos as ferramentas usadas para isso.
- Isso o que?
- Mandar no mundo, dominá-lo. Nos dias de hoje, mais do que nunca, é em nosso trabalho que se apoiam os donos de tudo.
- E qual é esse trabalho?
- Traduzir o mundo para nossa linguagem, a linguagem do dinheiro. Esta é nossa principal função: dizer no alfabeto dos preços e valores todas as coisas da existência. Catalogar no dialeto do Mercado tudo quanto ainda não tenha sido catalogado. Eis nosso trabalho: nomear todos os aspectos que fazem a vida em moedas, notas e cifras.
- Mais que coisa engenhosa...
- Você nem imagina, Menina. – disse a Moeda, com eficiência. – Nunca pensávamos que nosso trabalho iria tão longe! Atualmente, coisas que algum tempo não imaginávamos como nomear já estão aí, traduzidas para nossa linguagem de valores e lucros.
- Que tipo de coisas?
- Toda sorte de coisas: objetos, serviços, sonhos, afetos, desejos, modos de vida... Basicamente, tudo. Colonizamos muitos dos aspectos da vida. Estamos a um passo de nomear todas as coisas da existência na linguagem do dinheiro. Não temos limite para nossa potência de catalogar tudo.
- Mas isso não é terrível?!
- Depende do ponto de vista. Para aqueles que possuem o controle do nosso trabalho de moedas e notas, os engenheiros que operam e inventam a linguagem do dinheiro, para esses as coisas vão muito bem.
A Menina permaneceu em silêncio, perplexa. Com a Moeda na mão pensava no futuro, em um tempo em que todas as coisas tenham sua etiqueta de preço, em que os sonhos fiquem a venda nas prateleiras dos supermercados, em que nossos desejos mais secretos sejam planejados pelos donos do dinheiro.
Ainda perplexa se despediu da Moeda.
E comprou um chocolate.


segunda-feira, 27 de julho de 2015

20. A Menina e o Bicho-Preguiça

- Mas você não tem vontade de fazer as coisas de um jeito mais agitado? – perguntou a Menina, curiosa.
- Diversas vezes. – respondeu o Bicho-Preguiça, com certo pesar. – Alguns dias acordo com uma vontade de fazer tudo de um jeito apressado, urgente, cheio de energia. Mas então lembro do importante trabalho que tenho de realizar, e desisto.
- Qual trabalho?
- O trabalho que todo bicho-preguiça faz, nosso trabalho.
- E que trabalho seria este?
- Não está claro? Operar a preguiça, descansar. Eis nossa tarefa de bichos-preguiças: realizar todas as coisas da existência com o mínimo de esforço, o menor gasto de energia, sem a menor sombra de irritação ou ansiedade.
- Que moleza de trabalho, hein?
- Aí que você se engana, Menina. – respondeu o Bicho-Preguiça, com sabedoria. – Nesses tempos que estamos é cada vez mais difícil operar a preguiça, fabricar o descanso. Nunca as coisas pareceram tão urgentes, apressadas, como se existir fosse um ato de produtividade. Todos sentem muita pressão nas costas. Nunca nosso trabalho de bichos-preguiças foi tão importante.
- Por que?
- Por que com nosso trabalho lembramos as coisas da existência que a pressa é só mais um jeito de fazer as coisas, só mais um modo de fabricarmos a vida. Nós, bichos-preguiças, somos a lembrança permanente de que os acontecimentos podem ter mais calma. Em suma, servimos para lembrar a necessária preguiça de todas as coisas.
- A necessária preguiça de todas as coisas... – repetiu a Menina, pensativa. E se despediu do Bicho Preguiça, que acenou vagarosamente e, com toda a calma do mundo, escalou a árvore para começar seu dia.
No resto da manhã, a Menina ficou à toa. Sentou-se em um canto qualquer e, como num ato vital, mas sem esforço, deitou na grama, preguiçosamente. E ficou ali, arrastando o dia.
Desnecessariamente olhando os acasos da vida.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Começo das Despedidas

Leitoras e leitores das Conversas da Menina com o Mundo,

Excepcionalmente esta semana não será publicado nenhum conto nesta página. Ao invés disso, o que se tem é um comunicado, dado com pesar: as publicações das Conversas da Menina com o Mundo caminham para seu fim.
Isso mesmo: o conto de número 25 será o último conto publicado.
Este projeto tinha esse objetivo desde o início. A meta era conseguir acumular 25 contos, escrevendo, desenhando, digitalizando e colorindo conto a conto, segunda a segunda, durante 6 meses consecutivos. E aqui estamos. A 6 contos do fim. As Conversas da Menina com o Mundo são este acumulo, parido com horas de trabalho, esforço e poesia.
O pique para tanto trabalho veio de um só lugar: a recepção maravilhosa que os contos tiveram nos meios virtuais. Os elogios, comentários, perguntas, depoimentos recebidos semana a semana, publicação a publicação. Acima de tudo, palavras de incentivo. E isso é o mais gratificante de todo esses escritos: saber que os esforços de algumas palavras e desenhos, às vezes, encontram acolhida em corações e mentes generosas.
Gratidão por todas e todos que acompanham as publicações das Conversas da Menina com o Mundo.
Findado este ciclo, terão os próximos passos: criar um site para abrigar os contos, diagramar todo o trabalho em um livro, construir espaço de divulgação do trabalho em revistas, jornais, publicações etc. Coisas que este pobre autor não tem condições de realizar somente com seus esforços. Veremos por onde este barco anda.
Por enquanto, rememos:
A todas e todos que seguem os contos, até semana que vem. Voltamos a normalidade das publicações, até o conto de número 25.
E então será mesmo uma despedida.
Por enquanto, é só o começo dela.

Há braços,

Rafael Presto
Autor das Conversas da Menina com o Mundo


segunda-feira, 13 de julho de 2015

19. A Menina e o Verme do Cemitério

- Mas então você convive o tempo todo com gente morta? – perguntou a Menina, espantada.
- Não! – exclamou o Verme do Cemitério. – Quem é que gosta de conviver com gente morta? Nós, vermes do cemitério, gostamos de comer os mortos.
- Que horror!
- Isso porque vocês, humanos, cercam a morte de sentimentalidades. É só verem um cadáver que, pronto, já ficam cheios de topos os tipos de afetos. Nós, vermes do cemitério, não. Quando vemos um cadáver pensamos: comida!
- Como você é insensível... – respondeu a Menina.
- Materialista.  Nós, vermes do cemitério, somos materialistas. E, afinal, vivemos de nos alimentar dos mortos. Mas isso não interfere na nossa sensibilidade. Existe poesia nisso que fazemos.
- Como assim?
- Comemos a morte e, assim, reciclamos a vida. Os cadáveres que digerimos retornam à terra, para que possam ser absorvidos pelas raízes das árvores ou da grama. Fazemos parte desse ciclo geral das coisas, do movimento da existência, com seus nascimentos, transformações e mortes.
- É verdade, há nisso muita poesia.
- Estou te dizendo.
- Bem, preciso ir. – finalizou a Menina. – Vou deixa-lo com seus mortos. E com seus versos.
- Gratidão. Te desejo o mesmo: siga bem com os seus, Menina.
- Com meus versos?
- Com seus mortos. -  concluiu o Verme do Cemitério. -  Siga bem com seus mortos.

   

segunda-feira, 6 de julho de 2015

18. A Menina e o Muro

- Mas você é muito impositivo. – disse a Menina, instigada.
- E o que você esperava? – respondeu o Muro, com naturalidade. – A imposição é a principal característica que carregamos, nós, muros que separam as propriedades. Nosso trabalho é esse: impor no espaço uma série de recortes.
- E vocês recortam o espaço para que?
- A pergunta certa, Menina, não é para que, e sim, para quem. Recortamos o espaço por desejo da humanidade. Ou pelo menos de uma parte dela. Nós, muros, somos a materialização da vontade de alguns.
- Que vontade?
- Não é óbvio? A vontade de alguns de pegar para si uma parte do espaço. Essa é nossa real função: garantir que os lugares possam ter donos. Não é um trabalho muito bonito, mas fazemos sem reclamar. É com ele que se definem as fronteiras de todas as coisas: países, fazendas, fábricas, prédios. É a dureza de nossas pedras e tijolos que garantem as propriedades do mundo.
- Mas... e as pessoas que não tem espaço algum? Como ficam? – retrucou a Menina.
- Do lado de fora. – disse o Muro, definitivo. – Essa é nossa obrigação fundamental: garantir as desigualdades dos espaços onde a humanidade existe. Cumprimos nosso dever de muros a muitos milênios, desde os primeiros passos da sua espécie.
- Isso é muito sufocante... – falou a Menina, aflita.
- Depende do ponto de vista. Mas lembre-se sempre disso: não existem muros que não possam ser derrubados. – finalizou o Muro. – Nesse mundo, Menina, tudo que tranca, trinca.


segunda-feira, 29 de junho de 2015

17. A Menina e a Vela

- Mas como é consumir a si mesma? – perguntou a Menina, intrigada.
- É um momento de êxtase. – respondeu a Vela, suspirante. – Quando lentamente derretemos para fazer brilhar nossa chama é quando cumprimos com nosso propósito de velas! Nesse momento, vivemos nossa maior alegria.
- Mas vocês não morrem no processo?
- É evidente. É com o custo da nossa existência que fazemos flamejar nossos pavios.
- E você não tem medo de deixar de existir?
- Um pouco. Mas a felicidade de brilhar, mesmo que só por um momento, compensa qualquer receio.
- Como você é corajosa...
- Não é uma questão de coragem, Menina. É uma questão de propósito. Para reluzir, toda existência morre um pouco. É preciso existir com o máximo da possibilidade para marcar o tempo com aquilo que podemos ser. É preciso queimar a vida, intensamente.
- Eu teria medo de queimar até desaparecer...
- Isso porque vocês humanos não gastam a vida em chamas, mas em anos e décadas, contados nos calendários. O seu pavio, Menina, é o tempo. Nós, velas, somos diferentes. Pertencemos a mesma espécie que o sol ou as estrelas: existimos para nos consumir, e nos consumindo relampeamos instantes de claridade universo afora.
- Sua chama é mesmo muito bonita. Como ela se mexe!
- Está dançando. – disse a Vela, sedutora. – Para você.
A Menina sorriu, debruçou sobre a mesa, e ficou ali, observando a Vela com seu fogo, que dançava e dançava. Até que a Menina dormiu. Pensando nos incêndios e brilhos da vida.


segunda-feira, 22 de junho de 2015

16. A Menina e o Televisor

- Mas como é ser um televisor? – perguntou a Menina, curiosa.
- É uma coisa bastante melancólica... – respondeu o Televisor, tristemente. – Apesar de ter sempre a fachada cheia de brilhos e sons, nós, televisores, somos carregados de pesar.
- Eu pensei que vocês tinham orgulho de ser o que são. Praticamente todas as casas tem um televisor. – retrucou a Menina, intrigada.
- E é justamente por isso que somos melancólicos.
- Eu não entendo.
- É complicado. Em primeiro lugar, nós, televisores, sempre transmitimos os mesmos canais. Milhões de casas com milhões de TVs para que se assistam em todos os lugares as mesmas programações. Nenhum telespectador interfere no que nós, televisores, comunicamos. Este é o primeiro motivo da nossa melancolia: nosso trabalho é sempre impositivo, nunca uma troca.
- Puxa...
- O que nos leva ao segundo motivo da nossa melancolia: é impondo nossos brilhos e sons para milhões de corações e mentes que nós, televisores, cumprimos com nosso gigantesco trabalho de manter as coisas da existência da forma como elas estão.
- Eu pensava que o trabalho de um televisor fosse divertir, informar... – disse a Menina, com sinceridade.
- É divertindo e informando que nós, televisores, mostramos o mundo como uma coisa incapaz de ser transformada. Esse é o nosso verdadeiro trabalho. E com ele, convencemos a existência a permanecer como está, inibimos suas transformações. Saber disso Menina, saber disso faz com que todos nós, televisores, sejamos assim, melancólicos.
- Compreendo. – respondeu a Menina, com pesar. E se despediu do Televisor.
Daquele em dia em diante, a Menina passou a assistir à programação dos televisores com muita desconfiança.


segunda-feira, 15 de junho de 2015

15. A Menina e o Caramujo de Jardim

- Mas como é carregar a casa nas costas? – perguntou a Menina, curiosa.
- Tem suas vantagens e desvantagens. – respondeu o Caramujo de Jardim. – Em suma, é um jeito de se levar a vida.
- Quais as vantagens?
- Por levar minha casa nas costas, carrego meu refúgio sempre comigo. Ao menor sinal de chuva, no caso de qualquer ameaça, qualquer surpresa, me recolho para minha residência, em qualquer lugar. Ter sempre um refúgio é um importante recurso.
- E as desvantagens?
- São inúmeras. Por carregar minha casa, não posso ter pressa. Não é possível. Tenho sempre que me arrastar lentamente por aí, como se arrastam os caramujos de jardim. Também por levar a casa nas costas nós não sabemos o que é retornar: somos sempre nômades.
- Como assim?
- Você, Menina, é livre para se aventurar pelo mundo, mas nunca esquece o caminho para sua casa. Mais do que isso: a você é possível retornar. Nós, caramujos de jardim, carregamos o fardo que carregam todas as criaturas nômades: levamos em nossas costas o peso de não ter nunca para onde voltar. Não temos raízes. Pertencemos a todos os lugares, ao mesmo tempo que não pertencemos a lugar nenhum.
- Isso não é muito triste?
- Às vezes. Mas também é bastante libertador. É como eu disse, temos nosso jeito de viver, com suas vantagens e desvantagens. Como você, Menina.
- Compreendo... – disse a Menina. – Preciso ir. Tenha um bom dia.
- Boa volta até sua casa. – finalizou o Caramujo de Jardim, e logo se pôs a rastejar, com sua casa nas costas, em sua caminhada de criatura nômade, sem ponto de chegada. Já a Menina retornou. Como retornam as criaturas que criam raízes em suas casas.


terça-feira, 9 de junho de 2015

14. A Menina e o Piano

- Mas como é viver fazendo música? – perguntou a Menina ao Piano.
- É uma coisa bastante cansativa. É com o desgaste das nossas teclas, com as batidas das nossas engrenagens, que a música pode ser fabricada. É um trabalho árduo, mas fazemos sem reclamar ou desafinar.
- Eu pensava que era uma coisa maravilhosa viver fazendo música... – disse sinceramente a Menina.
- Tem seus momentos. – respondeu o Piano, acolhedor. – Mas lembre sempre, Menina: nem só de sons memoráveis vive um piano. É exatamente o contrário disso. Os instantes de brilho, aqueles em que a música ressoa na sua forma mais potente, são exatamente isso, instantes.
- E o resto do tempo?
- O resto do tempo vivemos imersos no cotidiano exigente e cansativo como o de qualquer trabalho. Na maior parte do tempo, somos preenchidos por rotinas de estudos de escalas, músicas repetidas até o limite, criações truncadas, um dia-a-dia ocupado e repetitivo como qualquer outro. O que é óbvio. É da rotina trabalhosa que pode emergir os instantes de brilho.
- Mas a música é uma coisa única! – respondeu a Menina, com admiração.
- Única como são únicas todas as coisas que fazem a vida. A música, Menina, é só mais um dos elementos que fazem a existência. Nem mais, nem menos.
- Eu gosto muito de música.
- Gratidão por isso. É por conta de pessoas como você que os pianos seguem existindo.
A Menina sorriu. Depois, pediu licença e tocou o Piano. Bateu cada tecla, uma a uma, como se saboreasse um doce. E se despediu, feliz pelo encontro.
Na volta para sua casa, a Menina só conseguia agradecer. Agradecer por todas as criaturas que, apesar de todas as dificuldades, fabricam a música. E cantou.
Uma velha cantiga que aprenderá com sua avó.



segunda-feira, 1 de junho de 2015

13. A Menina e a Concha Marinha

- Mas como é ter o mar dentro de você? – perguntou a Menina, encantada.
- É uma coisa que muda constantemente. – respondeu a Concha Marinha, com naturalidade. – O mar que carregamos dentro de nossas cascas varia dia a dia. Em alguns momentos é um mar calmo e sereno, um barulho constante, tranquilo. Às vezes é violento e destrutivo, de modo que se você, Menina, escutasse uma concha em um dia desses, ouviria um barulho forte e ruidoso.
- Então vocês carregam o mar para todos os lugares?
- Não, Menina. Nós, conchas marinhas, levamos apenas o seu eco, sua lembrança. Ao mar pertencemos, e quando do mar nos afastamos levamos o relato de sua imensidão.
- E por que fazem isso?
- Você já tocou em uma estrela?
- Não... 
- Então pode me compreender. O mar é imenso e único. Mas não é distante, como a galáxia, por exemplo. O mar é imenso, mas é um imenso possível. Por isso levamos o seu barulho: temos o dever de lembrar o mar e toda sua vastidão possível. Além disso, o som que levamos é um lamento, uma espécie de canto, de saudade. É a forma que nós, conchas marinhas, usamos para falar desse desejo de retornar ao mar, presente em todas as criaturas que já o conheceram.
- O mar é mesmo muito bonito...
- E a ele pertencemos.
- Posso ouvir um pouco?
- É claro.
A Menina então levou a Concha Marinha até o ouvido e escutou o mar, profundamente. Depois, se despediu.
Enquanto ia embora, a Menina ficou pensando. Pensava que também ela era um pouco concha, que também ela carregava dentro de si o mar, um verdadeiro oceano. E sentou na areia, com seus sentimentos de concha, enquanto a noite caia sobre a praia.
Imensamente.



quarta-feira, 27 de maio de 2015

12. A Menina e o Pinscher da Madame

- Mas então você tem muitos privilégios? – perguntou a Menina, ingenuamente.
- Com certeza. – respondeu o Pinscher da Madame, com empáfia. – Tenho todos os privilégios que um cachorro do meu porte merece.
- Eu não entendo, você é tão pequenininho...
- Estou falando da minha raça, Menininha. Sou de uma linhagem de pinschers da aristocracia inglesa.
- E o que isso significa?
- Que sou um cachorro que custa caro, muito caro, e por isso sou merecedor de todos os luxos que cercam a minha vida.
- Que tipos de luxo?
- Todos. Todos os privilégios que podem ser dados a um pinscher valioso como eu. Minha coleira é feita de ouro e brilhantes, da grife mais cara do mundo. A cama onde eu durmo, de estilo clássico, custou mais dinheiro do que a criada humana que me serve ganha em meses. Minha ração é importada diretamente da Escócia, feita com carne de ganso.
- Sabia que existem milhares de cachorros morrendo de frio na rua?
- É claro que sei. Quem é que não sabe? As coisas são assim, Menininha. O mundo não é um lugar justo. Para se fazer um cachorro rico é preciso dez mil cachorros famintos.
- Você não se sente mal com isso?
- Porque eu me sentiria? – desdenhou o Pinscher da Madame. – Acho que você tem assistido desenhos demais. Quem é que não quer uma vida uma vida de luxos? Comer as melhores comidas, dormir nas melhores camas, viajar para as paisagens mais bonitas... Todos querem. Poucos podem.
- Mas e se os cachorros abandonados um dia se irritarem? E se vierem atrás de você com seus privilégios? – perguntou a Menina, intrigada.
- Isso não acontece. Para isso existem a carrocinha, os serviços de zoonose, os muros da mansão, os seguranças particulares da Madame. Para manter os cães miseráveis no seu devido lugar.
- Compreendo... – respondeu a Menina, pensativa. E se despediu do Pinscher da Madame, que começava a se preparar para ir a uma festa de cães da alta sociedade.
Naquela noite, a Menina dormiu mal. Agitada, se revirava na cama, suava. Nos poucos momentos que conseguia dormir, teve sonhos intensos. Sonhava com os cachorros de rua.
E sua revolução.




segunda-feira, 18 de maio de 2015

11. A Menina e a Aranha Tecedeira

- Mas como é passar o dia fazendo armadilhas? – perguntou a Menina a Aranha Tecedeira.
- Trabalhoso. Passo horas e horas ininterruptas do dia tecendo minhas teias para cobrir um tantinho assim de espaço. Para construir uma boa armadilha, Menina, é preciso muito tempo de árduo trabalho
- As teias que você tece são bem bonitas... – disse a Menina, com sinceridade.
- Toda armadilha tem sua parcela de beleza. Em alguns momentos, depois de passar dias e dias tecendo de um galho até o outro, olho para o trabalho pronto e acho determinada teia particularmente bonita. Nesses momentos, sinto orgulho. – disse a Aranha Tecedeira, contemplativa. – Mas a beleza, definitivamente, é o que menos importa em uma armadilha, Menina.
- E qual a coisa mais importante?
- Não é óbvio? Sua funcionalidade. De nada adianta a beleza de uma teia se ela não capturar moscas para garantir o jantar. Assim são as armadilhas: devem capturar seu alvo, ou não servem para nada.
- Tecer armadilhas me parece um trabalho tão ardiloso... – disse a Menina, pesarosa.
- E é mesmo. As armadilhas são, por definição, ardilosas. São feitas de esperteza e traição. Mas isso não faz de nós criaturas traiçoeiras. Ao contrário disso. Nós, aranhas tecedeiras, somos absolutamente leais ao nosso trabalho. Fazemos nossas armadilhas todos os dias, sem descanso. Jamais traímos nosso dever de aranhas.
- Antes de eu ir embora, posso ver você tecendo um pouco?
- É claro que sim, Menina. – respondeu a Aranha Tecedeira com generosidade. E se despediu, já logo voltando para o seu trabalho de tecer teias.
A Menina sorriu, se sentou, e silenciosamente observou a aranha com seu trabalho.
E ficou ali, pensando na vida. E suas armadilhas.


segunda-feira, 11 de maio de 2015

10. A Menina e a Pomba Urbana

- Mas eu não estou entendendo nada do que você está falando! – exclamou a Menina, aflita.
- Caga na cabeça! Caga na cabeça! – continuou a Pomba Urbana, em fluxo. – São 150 pombos para um velhinho jogando migalhas! Quem não come não vive! Cuidado com o carro! Já era: pomba no asfalto!
- Eu não consigo com toda essa loucura... – desabafou a Menina.
- A loucura não é nossa, Menina. – respondeu a Pomba Urbana, subitamente profética. – Nós, pombas urbanas, somos meros espelhos, reflexos orgânicos da cidade agitada.
- Então você tem momentos de lucidez?
- Menino com estilingue no telhado! Desviar da roda! Desvia do gato! Nossos ninhos ficam escondidos no alto, nas dobras dos viadutos e estátuas. As pombas filhotes piam, piam...
- Não deve ser uma vida fácil. – Concluiu a Menina, intrigada.
- A vida não é uma coisa medida em facilidades, Menina. A sobrevivência que é assim, há momentos fáceis e momentos difíceis de sobreviver. Mas a vida... A vida...
- A vida...? – continuou a Menina, esperando uma resposta.
- Migalhas! Senhora a oeste jogando migalhas! – exclamou a Pomba Urbana. E foi embora, sem se despedir, voando em direção ao outro lado da praça, junto com dezenas de outras pombas urbanas, disputar as migalhas jogadas pela velhinha.
Naquela noite, a Menina teve um sonho estranho. Sonhou que a cidade inteira era um grande manicômio com muros bem altos e ela, a Menina, era uma pomba, que alçava voo com suas asas. E voava. Para além dos muros.



segunda-feira, 4 de maio de 2015

9. A Menina e o Relógio Carrilhão

- Mas como é passar a vida contando o tempo? – perguntou a Menina ao Relógio Carrilhão.
- Essa pergunta é equivocada, Menina. Nós, relógios, não contamos o tempo. Nós o fabricamos. É com o árduo esforço das nossas engrenagens precisas que o tempo corre, corretamente fabricado.
- Como é possível fabricar o tempo?
- E você acha que a coisa acontece como? O tempo, Menina, é mais um dos inventos da humanidade, engenhosa em capturar todas as coisas. O tempo é uma coisa fabricada, por mais que isso te espante. É um esforço coordenado por toda gente todo dia.
- Mas o tempo passa para todas as coisas, e não só para a humanidade! – retrucou a Menina, perspicaz.
- Mas nem todas as coisas nomeiam e catalogam o tempo como faz a humanidade, Menina. Ou você acha que uma montanha conta o tempo em horas, minutos e segundos? O tempo como conhecemos é uma invenção, uma excelente invenção, aliás.
- Isso é assombroso... – respondeu a Menina, pensativa. – Toda nossa vida é organizada pelas horas, minutos e segundos.
- Para você ver o poder de uma invenção desse tipo. E o tamanho da importância do nosso trabalho de relógios.
- É mesmo um trabalho de muita responsabilidade. – falou a Menina, com admiração. – Que horas são?
O Relógio Carrilhão respondeu com precisão para a Menina, que agradeceu e se despediu, deixando-o com seu importante trabalho.
Naquela manhã, a Menina passou o intervalo inteiro inventando mundos imaginários. Criava, na sua imaginação, um lugar onde a humanidade não tivesse fabricado o tempo. Um mundo em que a passagem das coisas era nomeada de outra forma, percebida de outro jeito.
Até que o sinal tocou. Havia acabado o tempo.


8. A Menina e a Rosa Vermelha

- Mas você não se cansa de parecer tão frágil? – perguntou a Menina, delicadamente.
- E isso é um problema? – retrucou a Rosa Vermelha, gentilmente.
- Não sei dizer ao certo... Mas me parece perigoso ser tão frágil.
- Isso porque vivemos em um tempo de brutalidades, Menina. Por isso a delicadeza parece um defeito. Mas é justamente o contrário: a fragilidade é fruto de muito trabalho.
- Mas qualquer pessoa pode desmanchar suas pétalas com o menor descuido...
- É verdade. Contra violência não a diálogo possível, senão a violência. Por isso nós, rosas vermelhas, temos nossos espinhos.
- Para furar dedos violentos?
- Para nos proteger, e garantir o espaço que precisamos para desenvolver nossa fragilidade. É com ela nós, rosas vermelhas, acolhemos as pequenas coisas do mundo, suspiros, olhares, intenções, e por isso podemos ser um símbolo-gesto do amor. É nossa fragilidade que nos permite perceber os outros seres delicados, as outras existências frágeis que fazem a vida, e por isso podemos ser um símbolo-gesto de uma revolução.
- Tudo a partir da fragilidade?
- Tudo a partir da fragilidade. Quando alcançamos o máximo da nossa delicadeza é quando realizamos o máximo da nossa potência! Esse é o momento em que nós, rosas vermelhas, exalamos o máximo do nosso perfume.
- Você é mesmo muito linda... – respondeu a Menina, com admiração. – E infinitamente forte na sua fragilidade. Gratidão por isso.
E se despediram, a Menina e a Rosa Vermelha.

Naquela noite, a Menina fez uma lista no seu caderno, com todas as suas fragilidades. Era uma lista grande. Depois, foi dormir. Morrendo de orgulho de si mesma e de todas as suas delicadezas.


7. A menina e o Rato de Esgoto

- Mas você não tem muitas doenças? – perguntou a Menina, sem conseguir esconder seu receio.
- Sim, diversas. Mas não sei o nome de todas. – respondeu o Rato de Esgoto, com naturalidade.
- Isso não é muito perigoso?!
- O suficiente, mas nada que fuja da normalidade de qualquer uma das criaturas que vivem nas profundezas da cidade. Minhas doenças são tão perigosas quanto as doenças de um cachorro sarnento, ou de uma pomba de praça. Somos iguais em doença.
- E em que vocês são diferentes? – disse a Menina, já com menos receio.
- No ódio. Somos diferentes porque recebemos mais ódio da humanidade do que qualquer outra das criaturas do submundo. Um cão sarnento vez ou outra ganha um afago, as pombas ganham migalhas de pão apesar da sua condição. Mas para nós, ratos de esgoto, só são oferecidos gestos de ódio.
 - E por que isso acontece? – questionou a Menina, aflita.
 - A humanidade não precisa de muitos motivos para cultivar o ódio. Ao contrário, precisa dele. O ódio é o motor de muitas das realizações da espécie humana.
- Que coisa terrível...
- Eu prefiro pensar que é uma condição. – respondeu o Rato de Esgoto. – Sabemos que em nós, criaturas do submundo, se deposita o ódio da humanidade que caminha tranquilamente na luz do dia. Por isso, sobrevivemos com cuidado dos restos que conseguimos fisgar. Mas lá embaixo, longe dos olhos dos homens e mulheres, temos nossa paz e nosso império. Lá, entre canos de esgoto e toda sorte de lixos e dejetos, fazemos nossa vida, com nossas festas, nossos ritos, nossos acasalamentos.
- O mundo dos ratos e ratas de esgoto...
- Nosso mundo, que persiste, a despeito da humanidade com seu ódio. Bem Menina, preciso ir. Gratidão por sua humildade.
- Eu que fiz uma ideia errada de você... – disse a Menina, sem receio algum.
- Então não tem mais medo de mim?
- Não, nenhum.

- Pois deveria, Menina. – finalizou o Rato de Esgoto. – Deveria.


6. A Menina e a Velha Árvore

- Mas então você já viu passarem muitos anos? – perguntou a Menina, com admiração.
- Alguns... – respondeu a Velha Árvore, afetiva – Mas estou longe de ser a árvore mais velha desse parque. Não muito longe daqui, existe um jequitibá de mais de 300 anos.
- E como é, viver tanto tempo?
- Não há nisso nada de muito especial. Já vivi muitos invernos e vi mudar o ecossistema diversas vezes. Em algumas noites, sonho com tempos antigos, quando as florestas ocupavam todas as partes e a espécie humana não tinha essa fome tão voraz de agora.
- Puxa... Que incrível.
- É como eu disse, não existe mérito algum em viver mais ou menos anos. Se pude aprender alguma coisa foi isso: eu, que sou uma árvore, tenho o exato mesmo tempo que você, Menina: o tempo de uma vida.
Um silêncio antigo assoprou pelo parque. A Menina não disse palavra. A Velha Árvore continuou.
- Uma caverna leva 200 mil anos só para nascer. As estrelas vivem bilhões de anos antes de engolirem a si próprias numa gigantesca explosão de fogo. Algumas borboletas vivem uma semana. E todos vivem o mesmo, Menina, o tempo de uma vida. Nem mais, nem menos.
A Menina continuou quieta. Escutava a vida que acontecia. E abraçou o troco da boa anciã, profundamente.
- Mas o que te entristece, Velha Árvore? – perguntou a Menina, quebrando o silêncio.

- Pensar nas vidas que são cortadas antes da hora, Menina. – respondeu, profundamente. – Pensar nas vidas que são cortadas antes da hora.



5. A Menina e o Leão do Circo

- Mas não te maltratam demais por aqui? – perguntou a Menina ao Leão do Circo, alarmada.
- Nada muito fora do comum. É verdade, as vezes o domador exagera, é um pouco deprimente passar a maior parte do tempo dentro de uma jaula, mas pelo menos tenho comida todos os dias, banho toda semana. Alguns trapezistas não chegam a tanto. Em um circo, Menina, todos cumprem com sua cota de maltratos.
- Mas o trapezista é livre para ir, não vive em uma jaula.
- Livre para ir aonde, Menina? – perguntou o leão com ironia. – As criaturas do circo ao circo pertencem. Nós, leões do circo, temos a carne feita de lonas e trapézios, nossos rugidos são os olhos do público brilhando de espanto! Nós, como todos os seres deste lugar, somos comprometidos com o picadeiro.
- Então vocês estão presos ao circo?
- De certa forma... Mas me diga, Menina, qual ser que respira que não carrega suas prisões? Além disso, você esquece do mais importante: o espetáculo! É por ele que ficamos!
- Como assim?
- É difícil dizer... Na maior parte do tempo, viajamos de maneira precária, enfrentamos a fome e o frio. Os espetáculo tornam-se repetitivos, tediosos, com os mesmos estalos de chicote, as mesmas marcas de subir e descer da cadeira, o mesmo rugido de efeito... Mas as vezes... As vezes, em algumas apresentações, alguma coisa se passa e as almas transbordam! Nesses momentos, fazemos no picadeiro um instante de vida!
- E é por esse instante que vocês do circo passam por tantas provações?
- É por esse instante que o circo permanece vivo. E é por ele que permanecemos no circo. O show tem que continuar!
- O show tem que continuar.
E se despediram, a Menina e o Leão do Circo, que já começava a se preparar para o show daquela noite.
A Menina ficou para o espetáculo. E entre lágrimas e sorrisos se encantou com a contorcionista, vibrou com os trapezistas, temeu o leão com seu rugido de rei dos animais.
E foi embora. Transbordada de vida.